sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Inspiração para a Sexta...

Dante e Vigílio nos portões do Inferno
Gravura para A Divina Comédia (Dante Alighieri)
Por: William Blake


Núpcias do Céu e do Inferno, WILLIAM BLAKE (1757-1827), Tradução: Alberto Marsicano


"Mas antes de tudo, a noção de que o homem tem um corpo distinto de sua alma será abolida. Isto consiguirei através do método infernal, cujos ácidos corrosivos, que no Inferno são saudáveis & terapêuticos, ao dissolver as superfícies visíveis, revelam o Infinito antes oculto.

Se as portas da percepção se desvelassem, cada coisa apareceria ao homem como é, infinita.

Pois o homem se enclausurou a tal ponto que apenas consegue enxergar através das estreitas frestas de sua gruta."

W.Blake

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

25 de Novembro...

- Enquanto ouvia as atrocidades que iam sendo narradas, a delegada olhava pros hematomas em seu rosto, que a desfiguravam. O olho esquerdo mal conseguia abrir. Alguns dentes arrancados da boca. Apesar de presenciar diariamente esse tipo de cena, era sempre como se estivesse vivenciando pela primeira vez. Os sentimentos de revolta, indignação, impotência, eram sempre tão intensos como no primeiro depoimento. As histórias daquelas mulheres colavam em sua mente, uma a uma. Às vezes se questiona se não teria sido melhor seguir na área trabalhista... Bom, pelo menos o covarde não saiu impune. Aquela figura franzina ali sentada e suja de sangue, chorosa, semi analfabeta, de cabeça baixa, olho roxo e coração partido, não era uma vítima (ré?) comum. Cansada de contínua humilhação, dessa vez não deixou assim tão barato. Que o digam o covarde e suas partes íntimas - bêbado-filho-da-puta! E ela jamais seria capaz de condená-la...
EG

domingo, 22 de novembro de 2009

GUERREIRO II


Foto: Turva
Autor: EGibson
Dez'07, Rio Amazonas sob luar, Macapá-AP


...é chegado o dia
em que
o GUERREIRO
se curva.
Diante um sol
que lhe derrete
a armudura
- outrora perene

Que tal sol
generoso,
não te derreta
a bravura

Que te
sacie
toda
sede,
te acalente
as agruras

E frente ao
inimigo,
não te
ofusque
os olhos!

Que te
pegue
no colo...

Que reluza
à altura
dos teus sonhos...
e luta.

Meu coração em prantos
que em tua mão
pulsa,
sorri
e torce por ti,
meu guerreiro-guri


Segue avante!
E de agora em diante
se houver em tua vida
única noite
sombria
olha pro alto
e te farei um afago

e te darei companhia
- TUA PUTA SOTURNA,
Pra sempre SÓ,
Pra sempre TUA,
sem brilho
sem estrela
Por ora minguante
Por ora,
ainda turva.


Elke Gibson

domingo, 15 de novembro de 2009

SURFISTA AMADOR


Foto: Lágrimas
Luis Palma Féria
..
..
Na primeira vez que ELA me derrubou foi algo indizível. Mal sabia eu que era possível ser traspassado de maneira tão cortante e poderosa, que pudesse virar a pele do avesso e me arrastar por aí exposto como um caracol sem a casca, à mercê das intempéries de uma existência que de qualquer outra forma não teria razão de ser, sendo, tão somente por nos terem dito que assim era preciso. Iniciou com um murmúrio, rodeado por silêncio. Devolvido por mim com um soluço engasgante que me dificultava muito a respiração. Uma desolação de pensamentos preenchido por um vácuo pesado. Era eu sentado em minha prancha habitado por ausências em meio àquele gigante azul, instintivamente à espera DELA. Talvez por tendências suicidas, dei braçadas nervosas em direção ao murmúrio, impulsionado pelos espasmos dos meus soluços, ou mesmo porque algo me sinalizava que estar cara a cara seria a melhor, única e extraordinária forma de sobreviver, já que não havia rota de fuga. E eu deslizei ausente de mim e tenso, enquanto percebia todo o resto recuando, sem saber exatamente onde aquilo daria e o que estava prestes a enfrentar. Então ELA se desenhou num horizonte que a cada segundo encurtava um pouco mais. Vi o paredão – confirmação de minha pequenitude humana. Como tudo ao meu redor, meus sentidos também recuaram até ficarem imperceptíveis, só me restando os soluços, os batimentos acelerados e o gosto salgado na boca – já não comandava os movimentos, e num esforço titânico tentava ficar em pé, caótico e trêmulo na escuridão projetada pelo meu inconsciente, apagando os raios do sol cujo o brilho todos juravam soberano, sempre no alto de tudo. Foi quando ELA me alcançou. Mal posso descrever o que foi estar pela primeira vez dentro dela. Entubado numa espuma raivosa e engolidora que me lançava, minúsculo, em todas as direções. A prancha sob meus pés ao invés de estar ali em meu socorro me dando firmeza e sustentação, naquele momento mais pareceu algoz do que salvadora, pois me carregava numa velocidade impossível de dominar. A coisa se dava desta maneira - absolutamente nada eu podia controlar e ao mesmo tempo nada podia ser tão poderoso. Então caí levando a soberba junto, rodopiando em parafuso rumo às profundezas. Pequenos vislumbres de minha desgraça em forma de corais brilhantes e coloridos. Sem poder respirar e com pulmões aguados, senti a força do impacto na cabeça e também nas pernas e braços. Costas, rosto. Coração e estima. Esfolado na pele que já pelo avesso estava, continuei meu mergulho rumo à inexorável visceralidade, deixando pra trás meu próprio sangue como evidência de minha passagem nesse mar habitado por seres incompreensíveis.

Muito tempo se passou desde minha primeira vez. Hoje já sei bem o que me espera ao ouvir o murmúrio, mas tenho aprendido a compor junto com ELA, já que não é mesmo possível estar em terra firme, sentado, contemplativo, em segurança junto a tantos afortunados. Descobri que minha pequena e insignificante mão composta de tão frágeis dedos, ao tocá-la só bem de leve, como leme, me ajuda a manter algum equilíbrio me dando uma direção dentro desse turbilhão que me quer sempre esmagar. Já dá pra rabiscar no ar algumas manobras dignas de admiração, assistidas pelos afortunados lá da areia. O contato com os corais e rochas ficaram menos frequentes. Já nem sempre me sucede um rastro salgado de sangue.

EG

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Mimo de um Amor Incondicional

O boy lhe entrega o pequeno pacote. No cartão está escrito:

"A você, meu eterno puto...

Se eu pudesse,
e você deixasse
te enviaria mimo
que também lambuzasse
mas quente e molhada
embrulhada de presente
com um laço,
um cartão

e meu amor em desapego

e ficaria daqui
a imaginar
teu deleite...

Por enquanto,
só vai chocolate"

Naquela tarde não conseguiu terminar seus relatórios.

EG

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Coleções de Infância

Caminhava descalço
- ele e seu brinquedo
por vielas esburacadas
sacudindo sua pet,
o pivete,
catava todas que via...
Zunia!
"mais uma pra coleção",
o guri matutava...

SORRIA

Mas logo a mãe berrava
"pra casa!
moleque de miolo mole
pensa que é de aço?
tiro não escolhe
"
E o moleque corria...
Sua garrafa
recheada
das cápsulas
que catava
ao redor do seu
portão

Até que
belo dia
completou
a coleção
CATOU A ESPECIAL
Mãe gritou!
"ô moleque desobediente"
já não ouvia!
já não catava!
- já não sonhava
pra nossa ruína
pra nossa humana desgraça
essa não guardou na pet
Essa ele levou no
PEITO
Dessa não correu não.

EG

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Comemorações

Eles se amavam acima de tudo. E aquela noite seria uma comemoração especial, dez anos de uma união harmoniosa e feliz... Às vezes ele gostaria de ser um pouco mais gentil e atencioso, como é o desejo de tantas mulheres, mas as agruras da vida e uma criação militar fizeram dele aquele ser rude, pouco dado a afetações românticas; dificuldade que ele procurava compensar com extrema lealdade, dedicação e respeito - era assim que demonstrava seu carinho e afeto. E mesmo não sendo exatamente um poço de gentileza, sua amada estava ali, pronta pra reafirmar sua predisposição em passar mais uma década ao seu lado, mais um século se pudesse. Sempre tão apaixonada... Ela havia comprado uma lingerie nova pro momento especial, peça da nova coleção primavera-verão. Ele a serviu com mais uma taça daquele vinho chileno que tomaram no seu primeio encontro. Rascante, como era do agrado de ambos. Um soul envolvente tocando ao fundo. Pedrinho a essa altura já no seu terceiro sonho. Depois de muitos beijos apaixonados e algumas carícias preliminares, ele levantou-se da cama e caminhou até o banheiro. A expectativa despertava nela uma onda de prazer e quase a fazia gozar sozinha. Minutos depois, ele reapareceu. E mesmo não estando no auge da juventude, denunciado tão somente por algumas mechas grisalhas, ainda mantinha-se viril e musculoso o seu homem! Características ressaltadas ainda mais pelo bronzeado adquirido ao longo de muitas partidas de futebol na praia. Ela, com olhos semi cerrados e em êxtase ao ver que acertara, tanto no número, quanto textura e cor, que lhe cairam tão perfeitamente ressaltando ainda mais a cor da pele. Não se conteve e pulou da cama até a porta onde estava, prostrou-se de joelhos a sua frente salivando e revirando os olhos, enquanto sua mão esquerda invadia a seda lilás geladinha escorregadia, tentando desviar de tanta renda e tomar posse com mãos e boca do seu objeto a. Duro. Mas pouco antes de sucumbir de vez aos sôfregos carinhos da amada, num impulso carregou seu corpo franzino e nu, que poderia quebrar a qualquer momento, e a devorou em cima da cama, na posição preferida do casal. Com laçarotes, fitilhos e tudo. Assim deram início às comemorações dos seus dez anos.

Cinta liga, espartilho e tubinho preto ainda esperavam na caixa.

EG

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

BETH COBRA

apresentando... Beth Cobra, nova moradora do pensionato.
.
Beth Cobra acompanhou com os olhos as fissuras na tinta branca do teto. Cada uma das ramificações contadas e recontadas inúmeras vezes - exaustivamente. Interessante é que só parecia descascar na área próxima à luminária. Óbvio! Devido ao aquecimento! As descamações só lhe aumentavam a sensação de secura na garganta e narinas, as últimas entupidas com os malditos tubos. Ficou um pouco tonta. E como se tivesse pressentido o mal estar, a enfermeira chega com sua bandejinha e seu sorriso adorável. Hora das seringas. Curvilínea essa enfermeira. Beth a beijaria de língua se pudesse. Arrancaria aquele jaleco branco e a comeria ali mesmo, em meio àquela aparelhagem toda. Quem sabe o contato com a seiva daquela criatura transbordante não amenizasse sua aridez. Talvez então conseguisse fazer correr algum frescor em suas veias combalidas por tantas agulhadas. Olhou de soslaio pro monitor e esqueceu por ora das descamações do teto. Passou a acompanhar o desenho aleatório dos seus batimentos. Lembrava uma fileira de montanhas irregulares, num deserto pedregoso e esquecido, jamais visitado. Na grande maioria das vezes piscava num compasso fraquinho, de quem já nada esperava...

_ Então Sra. Beth. Conseguiu lembrar de algum nome?

Acenou com a cabeça que não. Murmurou algo, não compreendido por seu anjo de jaleco. E tudo escureceu novamente.

Sonhou. E no sonho atormentado conseguiu distinguir a figura de uma mulher com o olhar mais repreensor que testemunhara na vida. Prestando mais atenção, Beth percebeu que ainda usava vestido. Um vestido florido que odiava, costurado numa máquina antiga de pedal de ferro. O detalhe do pé de sua mãe subindo e descendo hipnoticamente naquele pedal. Ponta, calcanhar. Ponta, calcanhar... Sim, sua própria mãe coseu o tal vestido de flores que tanto odiava, grintando pra que voltasse pra dentro de casa e largasse a maldita bola. Ou tempos depois, gritando pra que nunca mais voltasse. E assim lá se vão quase trinta e cinco anos desde que resolveu obedecer às últimas categóricas ordens - então com quinze anos.

Sete dias depois e as descamações no teto pareciam ter aumentado. Já não se sentia assim tão tonta. As agulhadas a fortaleceram - sempre fortalecem. Só precisava muito sair dali. Seu gato, coitado, a essa altura já deve estar duro, morto por inanição. Mas seu anjo de jaleco branco dizia que não era possível partir, a não ser mediante a tal assinatura. Pra que diabos precisava de uma autorização pra ir embora? Nunca alguém havia se responsabilizado por nada, por que haveria de ser diferente agora? Não era uma questão de amnésia, ela simplesmente não tinha um um nome pra aporrinhar. E seu anjo parecia não compreender isso. Não havia um nome disponível, disposto a se abalar até o hospital só pra dar um rabisco num papel idiota, cuja existência e obrigatoriedade só serviam pra lhe esfregar na cara sua total e completa solitude. Precisava ir embora. Mas quem haveria de se importar? Assim como chegou trazida unicamente por suas pernas e acompanhada apenas por uma enorme dor no peito, também deveria sair por conta própria. De relance viu os peitos volumosos do seu anjo, pela brecha aberta entre um botão e outro enquanto delicadamente era servida sua sopa. A visão a deixou em êxtase. E se convenceu de que ali era o céu. Parou de buscar um nome. Parou de desejar voltar ao convívio de ausências, em seu deserto amarelado.
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EG