segunda-feira, 21 de março de 2011

DARLUZ

Autor: Marcelino Freire
(BaléRalé / Editora: Ateliê Editorial / 2a. Edição / 2003)

.
Dei José, dei Antônio, Maria, dei. Daria. Dou. Quantos vierem. É só abrir o olho. Nem bem chorou, xô. Não posso criar. É feito gato, não tem mistério. É feito cachorro na rua, rato no esgoto. Moço, quem cria? É fácil pimenta no cu dos outros. Aí vem a madame, aí vem gente dizer: arranje um trabalho. Arranje você. Me dê o trabalho, agora. Não sei ler, não sei escrever, não sei fazer conta: José, Antônio, Maria, Isabel, Antônio. Dou nome assim só pra não me perder. Quem mais? Evoé, Evandro. Agora chamem como quiser. O filho depois ganha vida importante. Sei de um que até é doutor sei-lá-de-quê, eu estou pouco me lixando.
.
Menino é para largar mesmo. Agora dizer que dá um peso no peito, a consciência chumbada, que nada, não tem essa. Vem você morar nesse buraco. Vem você dar um jeito no mundo, repartir seu quarto. Nunca. Esse olho é irmão desse. Veja, Maria, pôs Jesus no mundo, filho do Espírito Santo. O Pai largou.
.
Você viu como José sumiu, se evaporou? Maria é que foi lá, no pé da cruz, se arrepender. Eu, não. Eu quero mais é distância. Você ter filho chorando, no seu pé. Fome, está escutando? Fome. O que você faz com a fome, tem remédio?
.
Agora é fácil opinar nesse bê-a-bá. Sei que quando morrer não vou para o inferno, já estou aqui. Só saio daqui para outro canto. Falo isso para o Altamiro, ele ri. Meu quarto marido, o Altamiro. Porra de marido. Só tem homem vagabundo no mundo. Por isso salvo os meninos. Faço mais do que o governo faz. Faço e dou destino.
.
Dou, dou, dou.
.
Vendi a Beatriz no farol. A moça que comprou chorava de dar dó, um nó. A moça do carro abriu o vidro, o marido pagou e zum. Para nunca mais, como um vento. Para nunca mais, um esquecimento. Cicatrizo tudo, entende? Meu corpo está vacinado. Agora a mulherada de hoje, na frescurinha. Ultra-som, escutar a batidinha do coração. Dão muita importância para o amor. Amor, quem me deu? Altamiro, esse porco? Já viu amor entre porco, entre sapo, entre pombo? Aí dizem que o pombo é bonito porque o pombo se empomba, porque o pombo corre atrás da pomba. Fico só vendo esse derramamento. Bom é pombo assado e pronto. Pombo melhor do mundo. Pombo para necessidade e acabou.
.
Dizer que ninguém abandona ninguém, que toda mãe é mãe até o fim, tá aqui, ó. Sou mais mãe que muita mãe por aí. Leva o filho para escola e abandona. Leva o filho para o shopping e abandona. Para a puta que pariu e abandona.
.
Pelo menos fui corajosa, não fui? Tive peito, não tive? Fala. Quem assume essa postura, qual o filho da mãe? Vai, diz. Quem, menina?
.
Agora deixar florzinha morrer murcha. Já vendi até leite do peito, você acredita? Vendo. Teta, treta, entende? Alimentei aí um bichinho que a mãe não quis dar pra ninguém. Fica ali, agarrando o filho na miséria, pode? Peito tá morto, não tem leite? Eu dou, mas cobro. Troquei por um sofá, não lembro.
.
Fiz negócio.
.
Quero ver quando esta peste crescer, quero ver. Só de saber que meu leite ajudou esse diabo a se foder.
.
E tem mais. Todo mundo é solidário. Mas na hora, olha, o povo é foda. Vem aconselhar pílula, distribuir planejamento. Quero saber o que fazem com nosso sofrimento. Vai, quem diz? Quem já foi infeliz? A moça do carro, a moça que levou Beatriz, chorava naquele momento. Mas hoje é hoje. Hoje é outro tempo.
.
Agora esse filho de uma jumenta vem pra cima de mim, o Altamiro. Marido merda, entende? Vem aqui, tira o caralho do corpo, bêbado. Eu aguento. Tenho mais pena do caralho dele do que de José, Antônio, Paulo, Juscelino. Melhor que ter filho morto, tenho esse orgulho. Todos nasceram vivos.
.
Dou, dou, dou, Altamiro.