quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

DECLARAÇÃO DE AMOR

Um favor?
Morre.

E poupa-me da tua
presença cretina
Dos caramelos hipnóticos
Dilacerantes!
Do meu ódio faminto,
do meu tesão salivante.
E daí que o pau é teu!?
Se ele não for capaz
de preencher minha
ânsia,
que sirva ao menos
aos vermes lascivos
Que rastejarão por teus
escrotos
corroendo tuas verdades
Carcomendo a
arrogância.
Morre vai!
Antes que o serviço
eu mesma faça

Com lágrimas
nos olhos...

cravado na mandíbula
servido em pedacinhos
sorvido em único gole

Por favor, amor...
Morre.

EG

MEU SONHO

1 - EXT. TERRENO ABANDONADO - NOITE
Antenas de uma barata. Som de grilos. Barulho de um carro em alta velocidade. Concreto. OLHOS FIXOS por trás do concreto, através de uma fresta. Favela ao fundo com muitas lâmpadas acesas. Lua cheia. Novamente barulho de um carro em alta velocidade. Latido de cachorro.

2 - INT. QUARTO/BANHEIRO – NOITE
A. Quarto pequeno e muito simples. Som de despertador. CARLOS, trinta anos, levanta da cama e caminha em direção ao banheiro.

B. Carlos levanta do vaso sanitário. Barulho de descarga. Banheiro simples, cortina de plástico. Carlos faz a barba e toma banho. Caminha de volta pro quarto. Veste-se - calça jeans e camiseta branca. Abre a gaveta e apanha um computador de mão (PDA). Coloca dentro de uma bolsa tiracolo. Apanha um colete preto da gaveta, dobra e guarda na bolsa.

3 - EXT. PORTÃO/RUELAS – NOITE (Amanhecendo)
Carlos sai da porta de uma casa muito simples, sem reboco. Fecha o portão. Desce por ruelas estreitas de uma favela. Cumprimenta pessoas pelo caminho. Passa por crianças de uniforme escolar.

4 - EXT. TERRENO ABANDONADO - NOITE
Costas e traseiro nus de alguém agachado, que levanta-se e sobe as calças – de um pano roto. Mãos sujas - unhas grandes. Chão com muita sujeira. Um rato corre pelo meio do lixo. Pés descalços, INCHADOS e sujos caminham por entre o lixo. Cachorro vira-lata caminha logo atrás.
OLHOS FIXOS na direção de uma favela. Lâmpadas acesas.

Livre Adaptação Música 'O Resto do Mundo' (Gabriel o Pensador)
Referência: 'Resto do Mundo' (Clip Prof. Rogério Dias)
EG

Renúncia

Foto: EGibson - Dez'07 / Rio Amazonas e sua Lua Cheia - Macapá/AP.


Cravados teus dentes na carne
Finito é o pavor do obscuro
Em êxtase é teu, ansioso pescoço
e em gotas de ardor escorre
o vinho que ofereço,
meu amor...

Quente e vermelha é a oferta
Assim é a paixão,
agora perpétua
bebida prá tua alma liberta
a vagar pelo mundo
angústia eterna
imortal e solitária e etérea

Meu príncipe, minha fera
Renunciei a tudo
prá te acompanhar noite afora
nutrindo-se de sofrimento alheio
alimentando-se de dor
rindo do temor do desconhecido
que corações de tolos assola

Renunciei à mediocridade
à juventude escorrida
a experiências sonhadas
a tormentos insuportáveis
À vida

Só por ti
que na escuridão envolto
agora é dono da minha alma
meu sangue
e corpo

EG

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

O Dia que Encontrei Tom - Parte I

Hole damn shit, man! Que puta dia estranho é esse!! Cara, que vida bizarra... Sempre sonhei em te conhecer baby, mas nunca pude imaginar que isso pudesse acontecer de verdade. My Gosh... Eu, em pleno Harlem!! Bebendo bourbon contigo! Whatta crazy day, man! Whatta crazy day...
_So com'on mom'am!! Tell me your day, your crazy day…
Sure, baby. Eu conto, mas temos que fazer um trato. Depois você me faz um blues contando como a tonta da brasileira aqui got lost in Harlem. Em plena 125th Avenue, puxando uma mala de rodinha e carregando um lap top. With 4 miserable boxes in the pocket e um pé cheio de bolhas... Do we have a deal, baby?!
_Yeah! Promise. My crazy and sweet gun street girl. Can’t believe I found you by that drugstore, wearing thata fucking sexy red shoes.
Fechado então, dear. So, vamos ao meu dia...
Apesar de ter que viajar de volta pro Brasil hoje, ainda tive que trabalhar pela parte da manhã, pra fazer uma média com meu gerente, sabe como é né? Need to show how fucking hard I work! Bem, vejamos, cartão corporate: cancelado por falta de pagamento. Reembolso de per diem: não aprovado a tempo pra minha viagem. Cartão de saque da conta do Brasil: não rola aqui, não é “especial” – o viado (viado com “I” porque veado com “E” é o animal) do meu gerente não conseguiu liberar o cartão especial por conta de tantos “eventos” (segundo ele, 23 ao todo). Mas nem eu falando que já tinha recuperado a maior parte dos cheques, que era só uma questão burocrática de regularização junto a instituição bancária!! Nem eu falando que em breve começaria um assignment in New York e que, se o lá de cima ajudasse, ia montar nas verdinhas! You know whatta I mean?? Não teve conversa. Infelizmente meus argumentos não foram suficientes... nem a porra do maldito título de capitalização de mil reais que eu fiz a muito contra gosto serviu pra persuadi-lo a liberar a merda do “especial”. Mas pra ser sincera, mesmo que o viadinho tivesse liberado a porra do cartão pra vip's, que me daria o direito de sacar meus (veja bem, MEUS) parcos trocados fora do Brasil, mesmo assim, não adiantaria. Pelo menos não hoje. Os poucos mas bravos reais que resistiram na minha conta bancária neste fatídico dia, convertidos, não resultariam nem em 5 boxes. Ou seja, mal dariam pra pagar uma round trip de Stamford to Norwalk. Balanço da situação: dura, sem cartão, sem cheque, dispondo apenas de um passaporte, de um badge da empresa (nesse sim eu confiava!) e $29 - contados 11 vezes antes de deixar o hotel - e com uma missão impossível; sair de Armonk carregando um lap top cheio de informações “altamente confidencias” plus uma mala, que, apesar de ter rodinhas, era uma Sra. MALA (no sentido de encher o saco mesmo!) pra chegar ao aeroporto, que, pra dificultar minha vida tão descomplicada, ficava do outro lado da cidade. Mas como não sou mulher de correr de dificuldade, encarei tudo aquilo com um sorriso no rosto e uma confiança impressionante (uma certa inocência pueril). My dear Tom, do you have a simple idea? Get in JFK from Wetchester count, with miserables $29 in an alligator purse? Yeah.. Não é uma missão assim das mais fáceis. Ainda mais em se tratando de uma criatura tonta e sem a menor noção de direção como eu, e que, ainda por cima, encontrava-se com o raciocínio comprometido por conta de um estômago vazio que, por dois dias, só recebeu a visita de uma sopa horrível de cogumelo servida na cafeteria da empresa a US$ 2,50 e a de um café (arrrghhh!) de máquina a 50 cents (I had to save money!)...
_Sorry to interrupt, sir, but the bourbon is over. Would you drink other thing else, like...
_Whatta??! Are you crazy, man? Why you wanna cause such disappointment to my pretty lady?? She wanna drink her fucking bourbon!!
_Sorry sir...
_Dont be sorry man! You get to find some fucking bourbon… Do whatever you want, bring bourbon to my lady…
Acctually babe, I need a beer… Would you mind to pay me a beer? Bourbon is amazing, I know, but honestly I need a beer. You know what? I know there is no skoll in America, but I would be in heaven if you could get me a Corona…
_Didnt you hear that, man?! Hurry up brother! What are you waiting for? We need two coronas here!
_Of course, Sir.
Hey Tommy. I am happy to death ‘cas I lost this fucking flight. Nothing could make me more happy. Would you visit me at my place, in Brazil? And tonight? Would you whisper me Blind Love lyrics? Promise I’d never take that downtown train and would never leave you alone…
_Sure baby, sure. Whatever you want…
Well, deixei Armonk as 13:00 pm. Liguei pra Central Taxi: “Hi Ms.Santos…to White Plains? From North Castle building? Old headquarter? That is okay. Fifteen minutes, at the lobby. It will cost 13 dollars” (metade de tudo que eu tinha e minha jornada mal iniciara!!) Mas tudo bem. Não lembro agora quem me disse, mas com certeza havia uma shuttle de White Plains direto pro airport. E ainda me disseram mais: custaria $15. Bem, $13 do taxi, mais $15 da shuttle pro aeroporto, that sounds perfect! I will be fine! Ainda me sobraria 1 dólar pra, sei lá, de repente tomar um café de máquina no aeroporto antes de me empanturrar na comida da American Airlines (que diga-se de passagem não é lá grandes coisas, mas pra situação em que eu me encontrava, era a ambrosia dos deuses). O taxi, pilotado por um porto riquenho impressionantemente sem sotaque, me despachou em frente ao Crown Plaza, White Plains - conversa interessante, até que gostosinho, só não gostei do rabo de cavalo. Chiquerésima cheguei de salto alto ao Crown Plaza com minha mala e meu lap top dando uma boa pinta de executiva, a fim de pegar minha shuttle e dormir feito uma pedra a caminho do aeroporto. A big black guy at the lobby (acho que gostou de mim! Faço um puta sucesso com negões…). “Yeah! The next shuttle will come soon”. Êba! Procede então a informação que me deram… até que estou indo muito bem, tudo sob controle. How much??! $55? WHAT!?? I was told it is $15!! No way! Are you crazy, man? $55 to go to the airport in a little bus (praticamente uma van!)? “Mom’am, where do you think JFK is!?? It is not that close, baby!”. Man, you know what? I am gonna look for a cab, no way I pay you $55 (Claro! Eu não tinha essa grana! Se tivesse, pagaria correndo). I really, really appreciate it, you are too kind, but I will take a cab, okay? It costs me almost nothing and I will be alone and comfortable. “Okay mom’am. It is up to you, sweet heart. Good luck. If you prefer I can keep your suitcase here, at the hotel’s lobby until you find a cab, so you don’t need to carry it over”. No worries babe. It is a kind of your part (sempre quis usar essa expressão que aprendi no cursinho), but I can handle it. It is not that bad! Acctually I have enough time. My flight is only at 10 o’clock pm. I will take a walk in the mall. I mean, have time to ‘shop’ a bit before leaving to the airport. Thanks anyway. You are so gentle… Assim parti do Crown Plaza, de nariz em pé, lógico, chique, mas num misto de decepção, tremendo desespero, taquicardia, fome, cansaço e etc e tal. Sem falar na porra dos pés que doiam pra cacete. Eu nunca conseguiria chegar ao meu destino com aqueles scarpins espremendo meus dedos (merda desse papo de mulher moderna!). Primeira providência: me livrar daquela merda de sapato! Decidido isso, atravessei a rua rumo ao mall (White Plains mall). Entrei pela garagem, arrastando a mala. Na recepção, outro big black guy, tão gentleman quanto. Expliquei por alto a situação (precisava chegar ao aeroporto, tinha tempo, “podia ser de trem”, pleeease). “Bem, se vc conhecesse um pouco o Bronx, eu te indicaria um caminho, mas em se tratando de uma estrangeira, a melhor opção é apanhar o Metro North train direct to Grand Central Station, so you can stop at 125th Avenue. Lá tem um ônibus (60 bus) que leva direto ao aeroporto”. Beleza! Fechado então. Que facilidade! Que maravilha! Que espetáculo! Nem tudo está perdido… “If I were you, I’d take a taxi to the train station. It is not that far, but not a walking distance. And it will cost you almost nothing! Like 7 dollars only. No more than that...” Cool! Thanks a lot. I think I will take your suggestion. But first of all, need to get some souvernirs, I have some time, you know whatta I mean?
Souvernirs é o escambal. Tinha nem o do café. “It will cost you almost nothing”. Será que tava gozando da minha cara o negão??! E essa de “It is not that far, but not a walking distance”. Americano tem mania de carro! Queria mesmo era entrar no banheiro do mall e fazer aquela troca estratégica de sapatos que me permitiria estar preparada para a missão impossível. 125th Avenue! Puta que pariu!! Não sei porque mas uma voz interior gritava que o dia seria longo...
_So you put your fucking sexy red shoes, baby...
Yeah, sweet baby... Bem, achei um banheiro depois de muito rodar e estourar as duas bolhas de água gigantes dos meus pés - as rainhas, porque as súditas, as menores, continuavam firmes, intactas. Chegando lá comecei a operação. Primeiro resolvi que não carregaria o lap top na bolsa dele (do lap top), mas sim na mala de rodinhas. Era uma mala muito mala mas pelo menos tinha aquelas rodinhas maravilhosas! Um lap top T40 não era assim tão leve pra ser carregado nos ombros e apesar de não estar no Brasil, sei lá que tipos vou encontrar pela frente. Abri a mala e com muito esforço coloquei o lap top, com todos os seus cabos pertinentes (Odeio tanto cabo! Um dia me livro de todos eles...), uns cinco ao todo. A bolsa do lap top não coube na mala, tive que levá-la vazia pendurada nos ombros, feito idiota. Estava livre do peso, mas não livre de chamar atenção. Mas imagina! Pra quem enfrenta traficante, pivete, bala perdida, ônibus queimado e etc e tal, o que seria uma meia dúzia de marginais de primeiro mundo?! Imagino a cena do banheiro para quem assistia: algumas americanas de bochechas rosadas e cabelos petrificados por laquê e suas filhinhas de cabeças de milho, olhando aterrorizadas pra aquela coisa estranha no banheiro feminino. Até agora não entendi porque não me denunciaram pros seguranças do mall como uma provável terrorista. Tantos cabos bem mais pareciam aparatos de uma bomba. Na minha opinião, algo bastante suspeito.... “If you see something, say something”, já dizia o cartaz espalhado por todos os lados da cidade... Mudei de saia. Tirei a de trabalho e pus essa jeans mais confortável. Troquei os sapatos.
_Cool!!!
Saí do banheiro me sentindo verdadeiramente uma outra mulher. Podia fazer o caminho de Santiago de Compostela com esses sapatos vermelhos! Podia ir caminhando até o México, não sentiria mais nada. Puxando a maldita mala!! Lógico. O inconveniente novo é que as mãos, invejosas que estavam dos pés, resolveram comparecer com suas próprias bolhas. Puxar pode não doer as costas, mas que puxador duro esses fabricantes colocam nessas malas!
_ And you came to me baby, you came to me... I got to find you, baby… I gotta find you…
Lindo. Ao vivo tua voz é mais rouca e mais sexy do que no meu Blue Valentine... Ai, ai, well, como eu tinha “muito tempo”, não precisaria aceitar a sugestão do meu big black angel (quase pude ver as asas), e podia ir simplesmente caminhando ao Metro North Train Station. Ora! O que podia parecer uma caminhada tão longa pra um desses americanos sedentários e viciados em carro, definitivamente deveria ser um “pulinho” pra mim, um acolá de mineiro, desprendida que sou de aparatos motorizados, de alma andarilha (as vezes só me falta o bastão!) e dura como me encontrava (7 dólares poderiam significar vida ou morte naquele dia!). Além do mais, uma caminhadazinha me faria pensar na vida... E o que podia ser mais propício do que pensar nos acontecimentos da minha vida naquele momento tão especial?! Assim fui. Firme e corajosa! Decidida a chegar à estação de trem, saí mall afora (não depois de levar quase meia hora rodando dentro do mall, feito um peru tonto, tentando achar a porra da saída daquele lugar gigante e labirintesco). Puxando a maldita mala!! Lógico. No caminho, see how luck I am!! It began to rain!! Que maravilha! Chuva lava a alma. Limpa os pecados. Além de funcionar como um combustível propulsor que me fazia quase voar, já que por princípios éticos e filosóficos, nunca carrego “chapéu” (detesto essa maneira carioca tão idiota de definir um guarda chuva). Bem feito. Princípios éticos do cacete. Pulando de marquise em marquise, perguntando aqui e acolá e completamente dependente da gradissíssima “boa vontade” típica dos americanos, lá foi a idiota, que antes dura, faminta, cansada, sedenta, a little bit scared e com bolhas nas extremidades, agora dura, faminta, cansada, sedenta, a little bit scared, com bolhas nas extremidades, E, tchan, tchan, tchan, tchan...molhada! Pedindo muita licença ao lugar comum: miséria pouca é bobagem mesmo, ou melhor, pouca merda é bobagem, bom mesmo é um penico bem cheio! Só me faltava nevar em pleno mês de Agosto. Não estranharia nem um pouquinho.
_Baby, you don’t need to worry anymore! Now you are in such good hands. I’ll take care of you… No fears anymore… My sexy curling hair pretty lady in your red shoes. Rain dog bride…
It sounds perfect to me, baby, since I dont need to deal with uncle Vernon, Biltmore, Violet, Bill and Phil or auntie Mame, that is fine… Cheguei a Train Station. Não sou boba nem nada, dentro do train perguntei a moça furadora do ticket: excuse me miss, but is it true that this train can take me to 125th Ave.? “Sure! 125th is the last stop before Grand Central Station”. Cool! Não fui enganada então! And… another question if you don’t mind… “Sure!” Are you aware of any bus that can take me direct to the airport, at 125th stop? “Humm, let me see, yeah, I think there is one, maybe number 60 I guess. But you have to check it out once you get there, ok? I am not 100% sure". Oh that’s fine! Thanks sooo much! Wow! O número do ônibus bateu com a informação do meu mais recente anjo. Thanks Lord por enviá-lo ao meu socorro! Que dia de "sorte”...
EG

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

MAR



“...Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite...” *. Precisava encontrar urgente uma ponte. Um arranha-céu. Um punhal. Um maldito cigarro. Que se dane o que havia deixado por fazer. Que se dane o que havia feito. As tentativas de ser algo melhor. Pra que? Se tudo sempre volta ao mesmo ponto. A titânica luta pra se manter o máximo possível na superfície. Mulher submarino que emerge de quando em vez trazendo à tona sua incapacidade de flutuar. Ao se afastar daquela porta levava impregnado em suas narinas mentais, o cheiro do sexo. Um aroma capaz de abater. Capaz de elevar. Capaz de destruir. Forte, envolvente, acre. E letal... Acabara de vislumbrar a felicidade. Nua e curvilínea e loura. A felicidade leve e saudável. Perfeita e tranquila, envolta em lençois brancos. Sem manchas, passado. Sem demônios nem âncoras. De unhas vermelhas e sorridente. Meia volta e talvez lhe sobrassem algumas migalhas daquele éden - por certo lhe permitiriam um espaço acanhado naquela cama. Mas seus passos já não lhe pertenciam. Caminhou até o elevador tonta e vacilante. E tudo meio embaçado. E tudo meio tosco e difuso. Como os botões que dançavam a sua frente. Era T ou SL? Ou seria simplesmente 1? Nunca soubera ao certo muito menos agora. Afinal como se escapava de um lugar que exala tão maldita perfeição? A perfeição posta de quatro, com a cabeça pendida pra trás... A tua espera, amor. Insuportável! Fora perfeita assim algum dia? Por um lapso de segundo talvez. E ele? Como pôde suportar por tanto tempo as suas profundezas? As algas, os musgos e os navios carcomidos. Habitados por fantasmas e porcelanas quebradas. Águas calmas e escuras. Imutáveis. Não! Parecia tão injusto a tentativa de tragá-lo pra esse abismo sem fim. Jamais compreenderia a riqueza daquele turbilhão em silêncio, por onde passeavam seres extraordinários, das mais diversas cores, texturas, encantos e angústias. Melhor mesmo que seu amado se fartasse de claridade, cujas as ancas ele podia controlar e se refastelar sem perigo, ao som de gemidos infantis. Já era a segunda volta no quarteirão e nada daquele viaduto! Talvez escondido entre a neblina daquela noite muda. O silêncio que antecede a catástrofe. Onde estaria o mar e toda aquela imensidão de água? Parece que tudo recuara por léguas. Um murmúrio ao longe. Pés convictos, peito apertado. Ah! Então o viaduto. Se pudesse estaria presente no instante em que ele tomasse conhecimento do seu vôo. Cairia em profundo pesar? Ou simplesmente se compadeceria de leve? Consolado com a cabeça pousada nos voluptuosos seios uterinos do seu troféu louro. O chão vacilante a seus pés... É impressão ou ele estremece tal qual seu coração? O murmúrio que se acentua. Já podia sentir um leve respingar de gostas em seu rosto.

Cinco estampidos secos!
E a maior e mais aterrorizadora das ondas que jamais fora capaz de sonhar invadiu aquele quarto manchando com sua espuma sangrenta aqueles lençois e almas imaculados, perpetuando aqueles dois corpos felizes. Um no outro. Para todo sempre. Devastação. E enfim a leveza. E ela pôde respirar. Um novo navio a submergir, tranquilo, rumo à imensidão infinita...
--
Onde Poseidon é senhor.

EG


* “...Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite...” . Trecho de De Antonio Muñoz Molina, in Beatus Ille.