“...Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite...” *. Precisava encontrar urgente uma ponte. Um arranha-céu. Um punhal. Um maldito cigarro. Que se dane o que havia deixado por fazer. Que se dane o que havia feito. As tentativas de ser algo melhor. Pra que? Se tudo sempre volta ao mesmo ponto. A titânica luta pra se manter o máximo possível na superfície. Mulher submarino que emerge de quando em vez trazendo à tona sua incapacidade de flutuar. Ao se afastar daquela porta levava impregnado em suas narinas mentais, o cheiro do sexo. Um aroma capaz de abater. Capaz de elevar. Capaz de destruir. Forte, envolvente, acre. E letal... Acabara de vislumbrar a felicidade. Nua e curvilínea e loura. A felicidade leve e saudável. Perfeita e tranquila, envolta em lençois brancos. Sem manchas, passado. Sem demônios nem âncoras. De unhas vermelhas e sorridente. Meia volta e talvez lhe sobrassem algumas migalhas daquele éden - por certo lhe permitiriam um espaço acanhado naquela cama. Mas seus passos já não lhe pertenciam. Caminhou até o elevador tonta e vacilante. E tudo meio embaçado. E tudo meio tosco e difuso. Como os botões que dançavam a sua frente. Era T ou SL? Ou seria simplesmente 1? Nunca soubera ao certo muito menos agora. Afinal como se escapava de um lugar que exala tão maldita perfeição? A perfeição posta de quatro, com a cabeça pendida pra trás... A tua espera, amor. Insuportável! Fora perfeita assim algum dia? Por um lapso de segundo talvez. E ele? Como pôde suportar por tanto tempo as suas profundezas? As algas, os musgos e os navios carcomidos. Habitados por fantasmas e porcelanas quebradas. Águas calmas e escuras. Imutáveis. Não! Parecia tão injusto a tentativa de tragá-lo pra esse abismo sem fim. Jamais compreenderia a riqueza daquele turbilhão em silêncio, por onde passeavam seres extraordinários, das mais diversas cores, texturas, encantos e angústias. Melhor mesmo que seu amado se fartasse de claridade, cujas as ancas ele podia controlar e se refastelar sem perigo, ao som de gemidos infantis. Já era a segunda volta no quarteirão e nada daquele viaduto! Talvez escondido entre a neblina daquela noite muda. O silêncio que antecede a catástrofe. Onde estaria o mar e toda aquela imensidão de água? Parece que tudo recuara por léguas. Um murmúrio ao longe. Pés convictos, peito apertado. Ah! Então o viaduto. Se pudesse estaria presente no instante em que ele tomasse conhecimento do seu vôo. Cairia em profundo pesar? Ou simplesmente se compadeceria de leve? Consolado com a cabeça pousada nos voluptuosos seios uterinos do seu troféu louro. O chão vacilante a seus pés... É impressão ou ele estremece tal qual seu coração? O murmúrio que se acentua. Já podia sentir um leve respingar de gostas em seu rosto.
Cinco estampidos secos!
E a maior e mais aterrorizadora das ondas que jamais fora capaz de sonhar invadiu aquele quarto manchando com sua espuma sangrenta aqueles lençois e almas imaculados, perpetuando aqueles dois corpos felizes. Um no outro. Para todo sempre. Devastação. E enfim a leveza. E ela pôde respirar. Um novo navio a submergir, tranquilo, rumo à imensidão infinita...
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Onde Poseidon é senhor.
EG
* “...Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite...” . Trecho de De Antonio Muñoz Molina, in Beatus Ille.
EG, muito interessante seu texto. Continue nos surpreendendo. Parabens ! OAS
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