domingo, 31 de maio de 2009

PUNHAL

Vós!
Pessoa risonha-iluminada!
Que viveis da pele pra fora...
Refastelada ao sol
na vossa cômoda
loura-bronzeada
disfarçada surdez

Meto-vos
um punhal no bucho!
E vereis
como sois
da pele pra dentro!
Enfio bem no centro
e torço devagarinho...
Bem no intestino vosso
- o grosso!
revirando
da direita pra esquerda
até que percebais
vossa desgraça
infeliz

Não sentis?
Pelo olor do vosso
ARROTO,
que o interior
de vossas tripas
contem
toda vossa futilidade
fermentada
- há muito já
bolo de merda
imundo!
Consumido nos
restaurantes
de luxo,
que pagais
com vossa
ganância maquiada
pelo discurso
- bajulador hipócrita!
de quem se
importa
com a FOME do
outro

Quero só ver,
depois de rasgadas
e expostas
vossas pretensas
estrebuchantes bondades,
se ainda sereis capaz,
de ostentar radiante,
essa tal felicidade.

EG

sábado, 30 de maio de 2009

Senhores e Meninos - Contículo

Ôba! Hoje tem festa no asilo!
E lá se iam eles, a molecada toda, filar docinhos e salgadinhos na festa do “Abrigo dos Velhos”, como era chamada a casa da prefeitura que abrigava idosos. Chegavam sempre meio desconfiados, como uma gangue de gatos sorrateiros. Iam se chegando, se chegando, testando os limites de tolerância, e quando dava-se conta todos estavam lá, refastelados nas cadeiras, correndo pelo salão, investigando os quartos, metendo suas pequenas mãos nas bandejas de doces, apanhando compulsivos os guaranás que passavam. Mas nem tudo era só comilança. Tinha a música e a dança também. No fundo os velhinhos gostavam muito da presença da pirralhada. Todos fechavam os olhos pras traquinagens, e até achavam graça. Ninguém era capaz de expulsar aqueles ratinhos cativantes. Nesses encontros acontecia um momento mágico onde não havia mais abismos. Como se todos acabassem de ser paridos. E nada do que aquelas criaturas senis tivessem vivido importava mais. Nem histórias felizes, tampouco as infelizes. Nem acertos nem desacertos. Eram todos recém chegados pro baile, novinhos em folha. Momento raro em que o tirano senhor dos ponteiros levava uma rasteira daquelas. Bem merecida!

EG

quinta-feira, 28 de maio de 2009

dor

--
Estilete
corre
E alto E acima
‘til bottom
DE-SLIZA
Cirúrgico
Fino

reto
Preciso
Anest-esista
- é folga
It' s gonna hurt...
E sangra
E PULSA
derrama...
PINGA.

pinga

.

Pont-iagudo...
Rasga
from left
to right

E dói
Não urra!
Segura!
I told you...
E salta!

Esperneia
Amordaça!

Chora

Shut your
fuck up!


e cala.

si-lencia.

and I

MISS YOU,

love
.

EG

terça-feira, 26 de maio de 2009

ESCURIDÃO

Ela viu uma besta naqueles olhos que chispavam em faíscas. De ódio. Se alguma vez teve medo, com certeza foi esse o dia. Percebeu o quanto aquele homem marcaria sua vida, para o bem, ou para o mal. Trancada com um completo desconhecido num apartamento alugado por temporada, sem nenhum conhecimento prévio de passado, de possíveis e prováveis angústias, experiências, pai, mãe, sentimentos, crenças, valores. Nada... Pedro. Assim se chamava o homem de braços-troncos. Troncos que tanto podiam confortá-la, quanto esmagá-la até que colasse no chão. Daria sua alma pra ter aqueles braços por perto para sempre. Sabia o nome da empresa onde ele trabalhava, pelo menos onde dizia trabalhar. Mas jamais checou. Nunca duvidou dele. Os únicos telefonemas internacionais eram gastos com tórridas palavras de paixão e entrega – imaginou que jamais conseguiria se entregar tanto assim a partir de agora. E sexo. Muito sexo pelo telefone. Inúmeras e indizíveis declarações sussurradas, baixinho, no escuro do seu quarto. E agora ele estava ali, um sonho materializado. Espumando, só porque ficou um par de horas vagando sem rumo por uma cidade que não conhecia, a espera dela, cuja única certeza era a de que seria capaz de casar com ele naquele mesmo dia. Se ele a quisesse. Mas isso tudo não excluía o fato de estar amedrontada. Chamavam muito sua atenção as veias ainda mais sobressaltadas em seus braços e pescoço, bombeadas pelo o ódio que circulava em sua corrente sanguínea. Com ele era como se caminhasse por um cabo de aço muito fino, a trinta metros de altura. Qualquer passo em falso a faria despencar. Explicou-se. Disse que não tinha como fazer contato, que sentia muito pelo atraso e pela situação constrangedora, e que infelizmente não conseguiu ser liberada antes. Era um período difícil no seu trabalho. Jamais imaginou que ele pudesse estar zanzando pelas ruas, preso do lado de fora. Não imaginava que ele pudesse ter perdido a chave.

Ele apertou forte seu braço. Não poeticamente forte. Mas forte de doer e deixar marcas roxas. E então ela percebeu que não era só a cólera que corria em suas veias. Ele transpirava tesão. Tesão envolto à ira. Uma combinação fatal. Infelizmente para ela. Foi arrastada da copa até a área de serviço. No caminho tentava inutilmente se explicar. Explicações essas que ele não ouvia. Dele só obtinha uns resmungos ofegantes. Why you did that to me? - escorriam pelos dentes trincados, no seu sotaque dominicano. Era a única frase possível de se entender. Repetida inúmeras vezes enquanto era levada como um mísero inseto. Fraco, perto daquela montanha de músculos e revolta. Pavor. Viu a janela da área se aproximando e pensou em seus pais. Foi encostada de bruços contra o mármore frio e sentiu o vento no rosto. E só o que imaginava era o quanto seria difícil pra eles o reconhecimento do corpo da filha querida. Ficaria desfigurada - estavam no décimo andar. Ele olhou para o lado e viu a porta do quartinho de empregada. E a puxou pro lugar mais aterrorizadoramente escuro e claustrofóbico que já havia estado em toda sua vida de altos e baixos. Nada, simplesmente nada, era possível ser visto. Pela atmosfera, pelo cheiro, por uma espécie de sensor de morcego, percebeu o quanto era minúsculo o espaço. Um mofo mórbido subiu por suas narinas. Estava numa caixa de fósforos escura. Ali custariam a encontrar seu corpo. E quando encontrassem, muito provavelmente ele já estaria bem longe. E apenas uma cama também minúscula caberia naquele cubículo. Cama essa para a qual foi empurrada sem muita gentileza. A partir daí já não foi mais capaz de pensar coisa alguma. Desistiu. Desistiu de se justificar. Desistiu de tentar encontrar explicações pra suas inquietudes. Parou de imaginar seus pais. Já não importava mais buscar qualquer sentido. Passou a enfrentar tudo sem resistência. Solta. Vazia. Minutos derradeiros onde o nada era senhor absoluto e tirano do tudo. E deixou-se despencar. Mas sem no entanto conseguir conter lágrimas e soluços. Pedro levantou raivosamente sua saia, enquanto segurava firme o seu pescoço. E como pesava. Eram apenas dois dedos a comprimir devagar sua garganta. Polegar e indicador. Dois insignificantes dedos foram suficientes pra lhe tirar aos poucos aquele bem tão etéreo, do qual nunca teve tão plena consciência como agora. Seus pulmões esvaziavam-se. Seu coração ainda batia, cada vez mais fraco. E agora a escuridão não era só na caixa de fósforos ao redor, mas aos poucos sua mente também escurecia... Como se alguém a desligasse da...
--
Abriu os olhos sentindo-se encher de ar novamente. Pedro acariciou e beijou seu rosto, compulsivo. Beijava suas lágrimas que agora jorravam sem controle. Pousou a cabeça em seu ventre e lá ficou. Em silêncio. Quieto.

EG

domingo, 24 de maio de 2009

CORRENTES

Foto: J.M.Goes

romper com a carne
ceder ao intelecto
satisfaz
geografia com
bolsões de amor
carinho
preenchimentos,
AFETO?

ou aumenta
o buraco
pela ausência
do falo
que preencha
o solo
matriarcal
carente
transbordante
FÉRTIL?

a virtude
o desejo...

com que pele
meu corpo nu por
teu bem querer
- ansioso
se veste?

EG

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Casca

Tento te dar minha mão e te puxar, mas minha mão não te alcança. Então apanho um galho qualquer - escolho um bem comprido - mas ele também não é longo o suficiente. Meu desespero em não poder fazer nada. Essa areia engolideira que vai te tragando aos poucos, lentamente... Será que deveria entrar e me deixar ser engolida contigo? Seria melhor do que te assistir nesse triste afundamento. Eu, que sempre te cuidei, que te alimentei e banhei. Sabias que morri de ciúmes quando tu chegaste? Já te contei isso? Temi perder meu trono. Até te ameacei com uma surra. Mas aos poucos fui te acolhendo. Fui cedendo ao teu choro estridente, às covinhas nas tuas bochechas, ao teu jeito de se encabular e baixar o olhar quando chegava visita. Tão pequeno. Queria do fundo do meu coração poder te dar uma surra agora, nesse exato momento. Uma daquelas, de arrancar o couro! Com esse galho mesmo que tenho aqui nas mãos, tentando te puxar desse pântano. Prometo por tudo que é sagrado que se conseguir te arrancar daí, teu couro ficará em carne viva. E arranco também uma orelha, de tanto que vai ser torcida. Quase como fazia antigamente, quando tu aprontavas das tuas. E eu, tão autoritária e tirana, jamais perdoava... Mas tu não choravas nunca, mesmo diante de terríveis bordoadas. Ficavas quieto, calado, com o olhar torto, meio de lado. Que me matava aos poucos... Queria poder ter aquele olhar desconfiado de novo. E também as covinhas. E não esse olhar que afunda, que já quase não consigo ver, misturado à viscosidade dessa areia gulosa. Imunda. Por favor, fica quieto então, não faz nenhum movimento brusco.
Elke

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Altitude

Chegaria atrasado ao treino. Resolveu então que voaria. Projetou-se pra frente com muita vontade, e então conseguiu abandonar o chão. Esse impulso era sempre a parte mais complicada, pelo menos a que lhe exigia mais esforço, sem garantias de dar certo. E foi subindo devagar. Não como passarinho, que bate as asas com toda segurança de quem nasceu praquilo. Mas num voo meio troncho, desajeitado. Sempre contando com a possibilidade real de um acidente escabroso. Tentava não pensar nessa possibilidade, porque isso o desconcentraria e tornaria a possibilidade ainda mais real. O impulso funcionou, agora era uma questão de ganhar altitude. E subiu um pouco mais. Já via os fios de alta tensão aproximando-se - havia sempre o perigo de choque elétrico. Ficava nervoso... Não! Peraí! Não podia ficar nervoso, senão perderia o foco. O ideal era tentar se manter acima dos fios. Num tremendo esforço, movia o corpo em ondas, como o homem peixe do seriado de TV. Pensando bem, assim como o cara, ele também nadava numa espécie de fundo do mar. Só que um mar de ventos, que fazia uma resistência enorme a sua passagem. Por isso precisava dar um jeito de furar o paredão. Pra sua técnica funcionar, a sincronia devia ser perfeita. Difícil, porque seu corpo não era tão leve assim. A onda iniciava com a cabeça, concomitantemente aos movimentos dos braços, feito nadador mesmo. Abrindo caminho. Tudo tinha que acontecer exatamente no tempo certo, ou já começava a descer. Havia inclusive o perigo de uma queda súbita, como um tijolo despencado do sétimo andar. Calma, sem apavoramentos. Queria que seu pai o visse agora, assim todo flutuante, nas alturas. Ficaria orgulhoso. Vez ou outra um carro chispava loucamente abaixo. Imagina cair no alfalto e ainda ser atropelado? Os telhados vermelhos das casas de tijolos iam passando. Um a um.. Era uma sensação indescritível ver assim tudo de cima. Pessoas passando feito formiguinhas. Passando não na velocidade que gostaria, afinal, como já foi dito, não era um passarinho. Mas bem melhor do que seguir por terra, tendo que esbarrar numa penca de gente, que o faria chegar atrasado mais uma vez. Anoitecia. Isso tornava sua empreitada homérica ainda mais insana. Começou a se preocupar com esse escurecimento de fim de tarde... E já sobrevoava uma rua deserta, tida como muitíssimo perigosa. Não pôde evitar um certo desespero. Pra ser sincero, era mais que desespero, era um terror que aumentava gradativamente. Aos poucos começou a perder altitude. Já estava abaixo dos fios de novo. O pior, aproximava-se de uns tipos muito suspeitos, mal encarados. A cada segundo ficavam mais próximos, e já haviam percebido sua aproximação e seu temor. E já o encaravam com expressões sarcásticas e ameaçadoras. Seu coração disparou! E suava, e suava, mesmo com toda ventania. O grupo de mal elementos já quase podia tocar seus pés. E tentavam raivosamente, esticando os braços de bandidos. E ele se empenhava cada vez mais em se afastar daquelas garras. E os facínoras aproximavam-se quase na mesma proporção. Seu corpo já doia de tanto esforço. Seu pai já não podia presenciar isso... Maldita hora que resolveu ir àquele treino. Prometeu que se caso escapasse ileso dessa, não se arriscaria mais. Quase sem fôlego, conseguiu alcançar um poste de luz - a essa altura os cretinos já eram num total de quase dez. Uma quadrilha. Agarrou-se ao poste e ali ficou tremendo, até que surgisse uma chance de escapar. Seu peito arfando de cansaço e medo.

EG

terça-feira, 19 de maio de 2009

DECRETO AMAZÔNICO

--
"Canta ó Musa a ira de Aquiles, filho de Peleu, que incontáveis males trouxe às hostes dos aqueus..." *
--
Tendo consultado-me, pois, com minha adorada e muitíssimo respeitada Senhora Loucura, faço saber que, do alto de minha tirania para todo sempre irascivelmente apaixonada (frisando!), decreto banidos deste modesto, acanhado e ilusório espaço, sapiências, virtuosidades, aconselhamentos, certezas, retóricas, caretices e cartesianismos de toda e qualquer espécie!!! Fora daqui o argumento, o bom senso, a prudência. Fora daqui o real e a linha reta! Poder ora outorgado-me, se não pela minha condição de poeta, muito a desejar (perdão mais uma vez ó Musa do verso!), então pela minha condição IRREFUTÁVEL de MULHER (grifando: MULHER! Não mulherzinha bajuladora, ou de plástico, ou garota ou menina - ou uma merda de dama ou diva). Dispensados estão a bolsa, o esmalte, o corretivo de olheiras, a chapinha. O batom e o salto (de onde já há muito desci!!). Mantendo-se apenas minhas estimadas parcerias, a cólera, o ódio, o ciúme, a ira. O apego SIM, a violência voluptuosa e lasciva, o tesão, o gozo - sempre misturado à saliva. Não por ser mulher bem amada, mulher bem criada ou mulher bem comida, QUE SE DIGA, mas por ter sido criada num campo de batalha (salve ancestrais Amazonas!), envolta a corpos, ossos e tripas, e por nem sempre bem amar, mas SEMPRE bem COMER. Não com talheres e guardanapos, sentada graciosa, maquiada e ereta à mesa, esperando ser servida. Mas tomando e arrancando o alimento com as próprias garras, rasgando nas presas pontudas as suculentas carnes. Com a boca escorrendo. Como um espírito a um passo da guerra, ou que acaba de chegar de um deserto. Furiosa e faminta.

E tenho dito!

EG
--
* Trecho inicial do Canto I, de Ilíada (Homero).

domingo, 17 de maio de 2009

A SOMBRA

--
Trilha
estreita
excitante
misteriosa
- eu, eufórica
Com a escuridão
ao meu redor.

Um céu brilhante
de manganês
me guiaria...


Uma brisa
afrodisíaca
sedutora e irresistível.
Segui.
Eis que
A SOMBRA,
- Sim, ELA!
- Sempre ELA!
desnudou-se
horrorosa
a minha frente.
Imperiosa,
me deteve.

Tensa,
do espectro
assustador
me aproximei.
Investigador.
- que não quer ver!

Era SAPO!
Não simples pedra.
- Arretada agora era
a espécie...

Gigante imóvel
Tipo boi
Bufante!
Tirano e aterrorizador
Quase em pé!
Em suas
patas dianteiras
Sempre gordo!
Inchado
Espaçoso
Intransponível...

Olho no olho...
Cabeça em riste,
coaxou cavernoso ameaçador...
- Olhe bem, visse!
Cá lhe enfrento outra vez!
Ôxe!
E saltou.

Sua urina
ácida e ardida.
Amarga corrosiva.
Sua pele
pedregosa,
áspera,
repugnante,
lixa minha mucosa quando mexe.
- pouco importa a saliva.
Não escorre.
Não escorrega.
Não desce.
Mas avoluma-se
Intragável!
Na machucada traqueia
Engasgada...
Saudosa
e desiludida


EG

sexta-feira, 15 de maio de 2009

ANJO

* Nesse específico dia, especial, abro mão da tentativa insana de impessoalidade que busco com esse espaço, cinicamente disfarçada sob o manto sagrado da literatura (nem sempre tão disfarçada, nem sempre tão literatura assim, confesso... perdão deuses da prosa & verso por evocá-los tão pretensiosamente!) saindo um pouquinho do mundo dos sonhos e das trevas, pra compartilhar(?) "luminosidades" que ora me escorrem, em relação a um ser alado, que me protege, me aconselha, me salvou e ainda me salva a vida. Escancaro nesse momento meu diário virtual de cadeado e chavinha.. Registre-se!
--
“Vá com Deus,
O amor ainda está aqui...
Vá com Deus...”


Lá pela trigésima vez que Roberta Miranda repetiu na casa do vizinho esse maldito refrão, minha calcinha molhou. Não senhores, não foi gozo. Foi a bolsa que estourou. Tamanha irritação. Resolvi checar se isso era normal, ligando pro meu obstetra. “Vem pra cá. E pode trazer as suas coisas”. Eu nem entendi muito, afinal era só uma molhadinha de nada. Minha mãe sim, se apavorou. No fundo tive até que agradecer ao vizinho corno e a Roberta Miranda - rainha dos caminhoneiros - porque já se passavam cinco dias da data que Dr.Pasqualette havia me dado pro rebento preguiçoso, digamos, rebentar, e nada... Mas onde estavam as tais contrações? Eu sempre via nas novelas e nos filmes nacionais mulheres urrando de dor. E pra mim, era como se eu fosse dar um passeio num samba na Lapa. Aliás, passei a gravidez inteira sambando – e trabalhando, e estudando e lavando roupa e preparando trabalhos de faculdade, etc. Vai ver não sou a típica fêêêmea de verdade, dada a ausência de dor. Fui tranquilamente tomar meu banho, lavar bem os cabelos – depilada eu já estava que não era boba de entregar minhas partes íntimas nas mãos daquelas enfermeiras facínoras! Ai delas que se aproximassem de mim com algum prestobarba! Aí sim eu urraria, mas de cólera. E nem pensar em fazer aquela maldita lavagem. Já fui logo avisando que havia passado o dia só com um café com leite. Não seria necessário aquele procedimento extremo! Minha mãe enxerida quis me desdizer na frente de todas, alegando que, no mínimo, tinha sido um prato de feijão com arroz. Lorota! Coisa de mãe sádica como a minha. Nada de lavagem e pronto! Bem, me arrumei toda e parti.

A clínica era pequena, aconchegante, meio escura, corredores compridos e silenciosos. Como uma espécie de mosteiro. Beeeem diferente das clínicas hiper modernas peri-hotel-spa-natal que o mulherio anda frequentando. Dizem que até sauna e serviço de maquiagem pra receber visitas esses lugares têm! Bem, preferi o simples, afinal, eu mesma nasci de parteira – Dona Flor, que Deus a tenha. Aguardei Dr. Pasqualette folheando placidamente uma revista na sala de espera. Ele chegou. Me encaminhou pro quarto e mandou que me preparasse. Humm, pensei... é chegada a hora então da alta produção. Dentro do quarto saquei um chinelinho fofo, umas três opções de camisolas lindas que havia comprado com tanto prazer. Eram até românticas, acreditam? Mas escolhi a mais sexy, porque não ia ficar bancando a senhora matrona só porque ia parir! Afinal, eu era muito moça ainda, nem vinte e quatro tinha! Segundo meu velho pai doutor, biologicamente a idade perfeita pra procriar. Quem sou eu pra contrariá-lo... Depois de maquiada - É! É isso mesmo. Passei até batom pra recebê-la com todas as pompas e circunstâncias e laçarotes - lá chegaram as facínoras pra me jogar um balde de água fria. Me fizeram vestir um camisão verde horrível, botar um chinelo medonho e uma toca ridícula. Insistiram com o tal do procedimento extremo que depois das minhas ferrenhas argumentações, foram obrigadas a desistir. Após examinada, a conclusão era que eu devia entrar na faca. Que coisa! Uma quase selvagem como eu não parir nem de cócoras, nem num parto humanizado, nem dentro de uma banheira, piscina ou de cabeça pra baixo (esse inventei agora) pra provar o quanto sou fêmea-mãe o bastante? Tsc, tsc, tsc. Decepção.

Fui colocada numa maca. Aí sim, confesso, a tensão começou. Era como se até então tudo não passasse de uma brincadeira, de preparativos pra uma festinha. Empurrada fui até a anti-sala de cirurgia. É estranho ser empurrada numa maca vendo o teto passar tão rápido. Meus dentes cameçaram a bater incontrolavelmente. Como se tivessem vida própria. Tremia. Na sala de cirurgia me colocaram uma coisa no dedão, ligada a um monitor. A anestesista, com uma expressão séria demais pro meu gosto, pediu pra que eu virasse de lado e não mexesse um músculo! A coisa ficou feia. Como assim não mexer um músculo?? Se eu tremia feito vara verde de tão nervosa. Mas vai lá, me imaginei numa cadeira de rodas sem meus movimentos do pescoço pra baixo caso algo saísse errado, e aí sim, consegui ficar realmente imóvel. Eita injeção chata. Daí foi tudo tranquilo. Parei de sentir minhas pernas, e o abdomêm também. Fui bezuntada de vermelho da cintura pra baixo. Um tecido branco foi colocado na minha frente, e começaram os trabalhos. Estava um tanto tonta, meio desfalecida, entre sonho e realidade. Não sei se por conta da injeção na espinhela ou por conta do cheiro da tinta vermelha. Embora não sentisse dor, pude sentir algo fino passando no meu baixo ventre, era a lâmina. Dr.Pasqualette, enquanto empurrava com o antebraço minha barriga, trocava comentários sobre a decisão do campeonato carioca com seus assistentes. Homens... E de repente ela chegou (Maio, 15 de 1994, às 2:00 da manhã), com uma boca que mais parecia uma caçapa de sinuca, se esguelando, como se quisesse engolir o mundo. Mas assim que deitou no meu peito, com aqueles olhos de pitanga esbugalhados, acalmou-se, e eu, desmoronei... Nunca imaginei que pudesse pertencer tanto assim a alguém, ou que alguém pudesse ser tanto parte de mim. Dr.Eduardo, o pediatra, já adiantou que seria uma jogadora de basquete, porque as mãos eram gigantescas. Nasceu com 52 cm e 3,720 Kg o meu rebento.

Hoje se passaram exatamente quinze anos. E ela é tudo que tenho. É quem me salva das mancadas. Quem me aconselha e me aponta o caminho certo. Do alto dos seus 1,70 de altura. Se andamos de mãos dadas - e mão dela continua enorme -, é como se ela me levasse. Estranho? Papéis invertidos? Pois é isso mesmo. Ela é minha segunda mãe, linda, e sábia. E eu sou sua filha. Não vai ter festa de quinze anos. Nem baile de debutantes como eu tive (arrgh, imposição da minha mãe). Pelo menos não vai correr o risco de vivenciar o que vivi no meu baile, quando toda emperequetada e paramentada de princesa olhei por um buraco na parede e vi meu velho pai no meio do salão com aquele terno horroroso de Didi Mocó, cheio de naftalina, que eu havia implorado pra minha mãe não deixá-lo usar. Quase morri. Whatever, agora acho graça. De qualquer forma minha jovem filha-mãe está acima dessas baboseiras de contos de fadas. Não é a princesinha que necessita de um baile e de um príncipe pra dançar valsa. É uma jovem mulher, que sabe o que quer desde do seu primeiro suspiro (diferente de tantas senhoras de trinta), e que, tenho certeza absoluta desde do momento que nos encaramos pela primeira vez, já tá circulando aí pelo cosmos há séculos, séculos e séculos. E só deu um descidinha aqui nesse planetinha estúpido, se sujeitando a viver ao lado dessa criatura insensata que vos fala, pra trazer um importante recado.

Elke Gibson
--
Ao meu anjo da guarda.
Felicidades anjinho! Que você não canse tão cedo dessa loucura aqui embaixo, e passe pelo menos mais uns cem anos nos ensinando.

Em Madeira de Lei

De óculos rayban
E o terno
Italiano!
De elegantíssimas
riscas
- as brancas. De giz!
E os lustrosos sapatos
em couro!
- ahh o jacaré...
Rodeado por
brancas, amarelas
irritantes flores
- o aroma... até enjoei...
Sou pousado
enrijecido e roxeado
em meu
novo
confortável
- mas... claustrofóbico
espaço
- de madeira forte de lei!

Saudades do meu flat...
Saudades do meu closet...

Cancerígenas
células!
Por minha santa Mercedes!
Não merecia!
E o remédio?
Oras!
Por que não comprei?
Minhas tripas
estirpadas
e tudo mais
que HÁ MUITO fedia
Ensacadas...
Enviadas
Misturadas
a outras tantas
desconhecidas vísceras
Oco!
Sem coração nem miolo
- desses jamais precisei!
Nariz e ouvido,
entupidos com algodão
PERAÍ!
Ainda ouço!
Rarefeitos longínquos ruídos
de minha
escrota
miserável
pequena
inútil
merdinha
de
vida(?)

EG

quinta-feira, 14 de maio de 2009

INTESTINO DELGADO

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Sequências 1 e 2 Roteiro Longa Metragem em construção (núcleo "carioca da gema", Zona Sul).
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1 - TELA CLARA
Capa de revista famosa, de moda. Rosto de mulher branca, loura, de franja, por volta dos trinta e cinco anos. Seu nome é CLÁUDIA. Mão folheia revista de moda; unhas pintadas e anéis de ouro e pedras. Cabelos presos no alto da cabeça. Na revista, mulheres elegantes e bem vestidas. A página da revista é virada. Propaganda de bolsa de marca famosa e cara. Outra página é virada. Propaganda de perfume de marca famosa e cara.

Louça branca e brilhante, com porção de água no fundo. Bolos de cor marrom caem na água - barulho ao baterem na água.

Revista é folheada novamente. Propaganda de carro de luxo; mulher bonita ao lado do carro.
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Bolos de cor marrom caem na água - barulho ao baterem na água.

Barulho de descarga de vaso sanitário. Água com bolos de cor marrom em rodopio por alguns segundos. Água correndo por cano sinuoso, em alta velocidade - efeito especial.

Barulho de várias descargas sanitárias sendo acionadas. Água correndo por vários canos sinuosos - efeito especial.
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CLAREAMENTO
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2 - EXT. PRAIA - DIA
Dia ensolarado. Espuma de ondas de mar em rodopio. Praia. Prédios residenciais de luxo ao fundo. ANA, vinte e três anos, bonita, levanta de um mergulho. Arruma parte de baixo do biquíni. De costas, caminha em direção à areia. Audio (somente melodia): " olha que coisa mais linda, mais cheia de graça..."
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Aproxima-se de um grupo de jovens da mesma faixa etária - CLARA, vinte e três anos, cabelo encaracolado, tatuagem no pescoço; LEOZINHO, vinte e três anos, magro; e MONTANHA, vinte e quatro anos, musculoso.
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Ana senta-se na cadeira de praia ao lado de Clara, Leozinho e Montanha. Coloca óculos escuro (estilo aviador). Apanha um pente da bolsa e penteia o cabelo - LISO. Tem uma marca roxa no braço.
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ANA
A água tá uma delícia!

CLARA
Tá quentinha?

ANA
Uma piscina! Morninha!
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Um vendedor passa carregando um isopor. É negro, está suado, sem camisa e tem um pano enrolado na cabeça pra se proteger do sol.
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LEOZINHO
Ô Meu irmão! Tem de que aí?
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VENDEDOR
Frango com cenoura, ricota, atum...
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LEOZINHO
Vê um de atum.
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O vendedor entrega o sanduíche a Leozinho, que tira o dinheiro amarrado na sunga. O vendedor vai embora.
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ANA
Na moral... Não sei como vocês encaram essas paradas. Viu só a unha do cara? Que nojo...
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LEOZINHO
Deixa de ser fresca Ana. Aposto que tu come coisa pior.
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ANA
É ruim hein! Só como e bebo parada que conheço muito bem a procedência. Viu a reportagem ontem? Neguinho fez uma blitz nesses produtos de praia. E tu viu a aparência do sujeito? Arghh... Passo mal só de olhar.
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LEOZINHO
Hahahahhaha. Fresca.
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GUSTAVO chega por trás e agarra Ana. Ele tem vinte e quatro anos, musculoso, cabeça raspada, sunga de Jiu Jitsu. Gustavo aproxima-se do ouvido de Ana.
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GUSTAVO
Fala gostosa.
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Os dois se beijam. Após o beijo, Ana baixa a cabeça.
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GUSTAVO (Cont.)
Fala aí galera, beleza?
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LEOZINHO
Beleza... E aí cara? Qual foi da parada ontem? Sumiu. Não te vi na Baronetti.
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GUSTAVO
Fala sério... Baronetti na Sexta só rola paraibada. Tô fora!
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Gustavo e Ana se entreolham. Ana baixa a cabeça. Ana inicia uma conversa com Clara.
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INSERT
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Meia luz. Rosto de Ana, cabelos desgrenhados, olhos semi-abertos.
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FIM INSERT
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LEOZINHO
Ihhh.. qualé cara? Assim que é bom. Dá pra zoar pra caralho. Olha que tem umas paraibinhas que não sei não...Eu encaro...
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GUSTAVO
Assim que é bom!? Ah! Esqueci que tu é chegado a um pezinho rachado.
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Montanha ri muito.
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GUSTAVO (Cont.)
Eu não. Sou exigente. Só gosto de pezinho macio, lisinho. De princesa. Tô fora de favelada. Por falar nisso, tem ido lá pra filial do inferno? Puta que pariu! Só tu mermo pra atravessar aquele maldito túnel.
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Gustavo encara Ana, que novamente baixa a cabeça se volta pra Clara.
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INSERT
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Meia luz. Rosto de Ana, cabelos desgrenhados, olhos semi abertos, de quatro, nua, de perfil. Faz movimentos pra frente e pra trás.
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FIM INSERT
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Clara interrompe a conversa com Ana e volta-se para os três rapazes.
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CLARA
Caraca! Vocês são podres. Fala de futebol vai...
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GUSTAVO
Pronto. Tava demorando... Mas fala aí cara! Tem se aventurado pro lado de lá do túnel?
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CLARA
Cara, pára com isso. Tu pensa que o mundo se resume ao teu condomío florido é? Tem que vê sim outras coisas. Eu mesma já fui sabe onde? No Via Show.
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MONTANHA
Caralho!
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CLARA
Fui mesmo. E foi bem maneiro conhecer a parada. Tem que conhecer cara.
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MONTANHA
Hahhahahah
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GUSTAVO
Levou o brinquedinho novo que o papai trouxe de Miami e aproveitou pra fazer mais um doczinho? Pô, de repente é uma... Quem sabe não rola até um Oscar? Hahahahhahhahahhahaha
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MONTANHA
É mermo "leque"! De repente filmava as tchutchucas molhando o cabelo na pia por exemplo...Um puta documentário.
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CLARA
Cara, tô vazando. Muita babaquície junta. Tchau "miga". Passa em casa depois, tá? De repente rola o bistrô antes da night...
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GUSTAVO
Aproveita e convida também uma das amigas do Via Show. Não tem nenhuma Ludicíola por exemplo?
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ANA
Pega leve Gustavo!
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LEOZINHO
Tu é muito escroto cara..hahahahahaha
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Clara pega suas coisas e vai embora.
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ANA
Dá um tempo gente. Vocês pegam muito pesado. Já disse que são as aulas de sociologia...
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Gustavo olha pra Ana e joga um beijinho. Ana sorri e baixa a cabeça.
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INSERT
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Penumbra. Espelho. Rosto de Ana no espelho. Ela está de quatro, cabelos desgrenhados. Por trás de Ana, nu e em pé, Gustavo. Ele a agarra pelos cabelos, aproxima-se do seu rosto e sussura no seu ouvido. Gustavo afasta-se e Ana permanece de quatro. Um outro homem aproxima-se de Ana, por trás. Ele é negro, rosto em off, uma corrente dourada no pescoço; toma o lugar de Gustavo e transa com Ana. Ao lado, um pouco afastado deles, Gustavo transa com uma garota morena, cabelos encaracolados e compridos.
ESCURECIMENTO
EG

quarta-feira, 13 de maio de 2009

E por falar em paixões irascíveis...

Com a palavra, ninguém menos que minha idolatrada Senhora LOUCURA:
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“Segundo a definição dos estóicos o sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão prescrita, e o louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões. Eis porque Júpiter, com receio de que a vida do homem se tornasse triste e infeliz, achou conveniente aumentar muito mais a dose das paixões que a da razão, de forma que a diferença entre ambas é pelo menos de um para vinte e quatro. Além disso, relegou a razão para um estreito cantinho da cabeça, deixando todo o resto do corpo presa das desordens e da confusão. Depois, ainda não satisfeito com isso, uniu Júpiter à razão, que está sozinha, duas fortíssimas paixões, que são como dois impetuosíssimos tiranos: uma é a Cólera, que domina o coração, centro das vísceras e fonte da vida; a outra é a Concupiscência, que estende o seu império desde a mais tenra juventude até à idade mais madura. Quanto ao que pode a razão contra esses dois tiranos, demonstra-o bem a conduta normal dos homens. Prescreve os deveres da honestidade, grita contra os vícios a ponto de ficar rouca, e é tudo o que pode fazer; mas os vícios riem-se de sua rainha, gritam ainda mais forte e mais imperiosamente do que ela, até que a pobre soberana, não tendo mais fôlego, é constrangida a ceder e a concordar com os seus rivais. De resto, tendo o homem nascido para o manejo e a administração dos negócios, era justo aumentar um pouco, para esse fim, a sua pequeníssima dose de razão, mas, querendo Júpiter prevenir melhor esse inconveniente, achou de me consultar a respeito, como, aliás, costuma fazer quanto ao resto. Dei-lhe uma opinião verdadeiramente digna de mim: — Senhor, — disse-lhe eu — dê uma mulher ao homem, porque, embora seja a mulher um animal inepto e estúpido, não deixa, contudo, de ser mais alegre e suave, e, vivendo familiarmente com o homem, saberá temperar com sua loucura o humor áspero e triste do mesmo. Quando Plutão pareceu hesitar se devia incluir a mulher no gênero dos animais racionais ou no dos brutos, não quis com isso significar que a mulher fosse um verdadeiro bicho, mas pretendeu, ao contrário, exprimir com essa dúvida a imensa dose de loucura do querido animal. Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a idéia de passar por sábia, só fará mostrar-se duplamente louca, procedendo mais ou menos como quem tentasse untar um boi, malgrado seu, com o mesmo óleo com que costumam ungir-se os atletas. Acreditai-me, pois, que todo aquele que, agindo contra a natureza, se cobre com o manto da virtude, ou afeta uma falsa inclinação, ou não faz senão multiplicar os próprios defeitos. E isso porque, segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também, a mulher é sempre mulher, isto é, é sempre louca, seja qual for a máscara sob a qual se apresente. Não quero, todavia, acreditar jamais que o belo sexo seja tolo ao ponto de se aborrecer comigo pelo que eu lhe disse, pois também sou mulher, e sou a Loucura. Ao contrário, tenho a impressão de que nada pode honrar tanto as mulheres como o associá-las à minha glória, de forma que, se julgarem direito as coisas, espero que saibam agradecer-me o fato de eu as ter tornado mais felizes do que os homens. Antes de tudo, têm elas o atrativo da beleza, que com razão preferem a todas as outras coisas, pois é graças a esta que exercem uma absoluta tirania mesmo sobre os mais bárbaros tiranos. Sabereis de que provém aquele feio aspecto, aquela pele híspida, aquela barba cerrada, que muitas vezes fazem parecer velho um homem que se ache ainda na flor dos anos? Eu vo-lo direi: provém do maldito vício da prudência, do qual são privadas as mulheres, ..." *
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E o que diria, Senhora, sobre esses estranhos seres, os poetas?
Humm... mulher+poeta = 2 x loucura?
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"Já os poetas não me devem tanto, não porque não sejam igualmente loucos, mas porque têm o direito de ser membros ex professo do meu partido. Há muito tempo que se diz que “os poetas e os pintores formam uma nação livre”. Os poetas fazem consistir toda a sua arte em impingir lorotas e fábulas ridículas para deleitar os ouvidos dos tolos. Isso não impede que, apoiados nessas ridicularias, se gabem de obter uma divina imortalidade e ainda a prometam aos outros. O amor próprio e a adulação são os seus conselheiros indivisíveis, e eu não tenho adoradores mais fiéis nem mais constantes do que eles." *
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* Trechos extraídos de "ELOGIO DA LOUCURA"
Autor: Erasmo de Rotterdam (1466 — 1536)
Tradução: Paulo M. Oliveira

terça-feira, 12 de maio de 2009

Matinta Pereira

Autor: Luana Chagas
Estátua do Parque Ambiental de Paragominas - Pará
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À noite ela sobrevoou meu apartamento. E deu aquele grito fino de loucura.
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Então eu soube que o dia havia chegado. O grito ecoou pelos meus ossos, enrijecendo meus póros, fazendo com que cada um deles erguesse seu próprio pêlo, numa sincronia perfeita que desceu da nuca à canela, como numa carreira de dominó. Uma cólica aguda remoeu em minha barriga. Tive vontade de correr pro banheiro. Podia ouvir meus batimentos. Não que estivesse com medo. Não, nada disso. No fundo já queria muito esse encontro. Tinha uma curiosidade imensa sobre o que havia do outro lado da moeda. O mundo do lado de dentro do espelho. Porque no lugar que estava – grande bosta! – já bem sabia o que me cercava e o que me azucrinava. Nada era capaz de me surpreender. A chatice entediante das miudezas, dos nhem-nhem-nhens, das lamúrias dos humaninhos e suas “coisinhas” e tal. Queria mais que isso. Queria o novo. O inesperado! O avesso de tudo aquilo. Portanto, longe de um temor desesperado, eu diria que a cólica, os pêlos eriçados e a taquicardia, não passavam de uma simples manifestação já bastante previsível, cientificamente justificada. Segundo os estudiosos, todo animal pressente o seu dia. E quando isso acontece, asseguram os cientistas sabichões, seja pra ruivo, preto, amarelo, encardido, de duas, quatro ou nenhuma pata – mesmo no caso dos rastejantes – a porcaria dos mecanismos naturais são sempre automaticamente acionados. Alguns se borram – não foi meu caso, “graças a Deus” (com todas as aspas possíveis). Alguns de tão ligados até antecipam o processo, facilitando em muito o trabalho pra ela. A tal da adrenalina despejada na corrente sanguínea é tanta que o cabra pode ficar como se tivesse acabado de cheirar, de olhão esbugalhado. Engraçado é que não vi filminho nenhum. É lenda essa história de filminho, viu? Tua vida passando em flashes, numa versão resumida. Mentira! Tudo mito! Pelo menos pra mim, que já vinha me preparando pro encontro e portanto já vinha rodando meu filminho numa versão minissérie. Queria mesmo saber qual era sua forma – se é que tinha uma. Se tinha cor, se vestia mesmo um manto preto. Se carregava alguma coisa nas mãos. Se tinha uma aparência assustadora.

Ela deu mais um sobrevôo; um grito mais histérico ainda.
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E a porra dos mecanismos naturais mais uma vez se fizeram presentes. Dessa segunda vez, confesso, me borrei um pouco. Nada demais, mas fui ao banheiro resolver a situação. Não ficaria bem chegar do outro lado naquelas condições – sei lá quem me receberia. Resolvido o problema, voltei calmamente pra sala, sentei-me no computador pra redigir algumas frases – instruções que acreditava serem necessárias. Não pra mim! Que já estaria bem despreocupado de tudo, vivenciando todas aquelas novidades! Mas quem sabe pra Clotilde que viria pra faxina no dia seguinte. Coitada, não queria que essa criatura que tanto me confortou nos momentos mais difíceis, sobretudo quando a louça já batia no teto, ficasse assim, sem explicação alguma. Escrevi:

– Querida Clotilde. Pra começar, nada de choro e descabelamentos. Sei que você é um pouco dada a essas coisas, mas pelo amor que você tem aos seus filhinhos, não faça tanto escândalo! Não quero a vizinhança inteira alvoroçada, sobretudo a fofoqueira do 504. Se perguntarem alguma coisa, pode dizer por favor que foi um AVC. Assim dá menos pano pra manga. Ah... Não que isso me importe nesse momento, mas tenho certeza que a você importará: separei as roupas sujas, aliás, quase todas estão sujas. Assim que você tirar a inhaca, pode levar e distribuir lá na comunidade. Assim como os sapatos, e tudo o mais de uso pessoal que achar por aqui. Pena que você propriamente não vai poder utilizar muita coisa. Primeiro porque não é seu tamanho, segundo porque você não ficaria bem em roupas masculinas. Mas aposto que o Zé vai se refastelar com tudo. O que sobrar, distribui. Leva também relógio, computador, aquela porcaria de televisão e toda a tranqueira de quinquilharia que acumulei e que agora sei, não me servem pra coisa alguma. Não se preocupe, exatamente ninguém virá reclamar nada... Outra coisa, sua indenização está na gavetinha da cômoda. Apesar de ser uma diarista, sem o tal do vínculo empregatício, você merece toda a parafernália de FGTS, 130, INSS, e o escambal. Alías, tô te deixando bem mais que isso. Aposto que vai dar até pra terminar a bendita laje. Não... Não chora! Seja macho mulher! Cadê os cabelos nas ventas!? É só uma partida. Um afastamento temporário. Não se preocupe, nos veremos em breve. Eu vou tratar de arrumar da melhor forma possível as coisas pra você do lado de lá, pode ficar tranquila. No mais, é só isso. Entrega o dinheiro do aluguel do mês pra velha - tá dentro da escrivaninha -, senão é capaz dela entrar logo com uma ação, e não acho que haverá um oficial de justiça querendo ir lá me entregar algum papel. No restante, muito obrigado por tudo! Você sabe que foi muito mais que uma mãe poderia ter sido. Olha! Já disse pra não chorar... E tira por favor aqueles aliens da geladeira. O povo que virá aqui pros procedimentos habituais, não vai gostar muito do cheiro. Beijos nessa bochecha risonha! Até breve.

E assim, apanhei minhas caixinhas de remédios, um copo de uísque – nesse momento uma excitação – e deitei na minha confortável poltrona marrom, à espera de Dona Pereira. Diziam que era uma senhora de bastante idade. Cordialmente separei um fumo de rolo pra lhe presentear. Porque ouvia dizer que esse era um dos seus fracos...

EG

segunda-feira, 11 de maio de 2009

VENTANIA

Foto:EGibson
Rio Mazagão - AP
Dez/07
Por gigantescas
arenosas montanhas
tortuosas escaldantes
do deserto amarelado
que por séculos caminho
- com SEDE,
- com FOME,
vislumbro
bruxuleantes oásis
AluCinógEnoS
de carinho.
Refrescantes
tendas de amizade
- e bem querer,
onde imagino
poder

aliviar a secura
repousar
cética mortalha,
cansada
- há tempos abatida.

Mas logo
a repugnante realidade

na figura de
implacável furiosa
tempestade
pra longe
me arrasta
da visão enganosa
- desfaz-se desejosa fantasia...

Chicoteia
meu corpo
Impiedosa!
- sarcástica, cínica
num ciclone
de ventos cortantes
que dilaceram

meus fios de esperança

Lábios descamados, garganta ferida...

retomo minha sina.

E por mais mil séculos
carrego
esses ásperos
malditos
grãos de areia da verdade
que me arranham,
- incômodos
entranhados
nos póros

cabelos e olhos
Na boca.
Nariz e ouvido.

Na miserável ínfima frágil estima.

EG

domingo, 10 de maio de 2009

Salve, Salve a Rainha do Lar!

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Pernas afastadas, penduradas uma de cada lado. E a cabeça da médica ao meio. Médica fria, quase sem expressão. MARIANA sente uma pontada dolorida, mas não no colo do útero, e sim no colo do peito, apertado, do tamanho de uma ervilha. Os pensamentos em redemoinho, num liquidificador de angústias. E aqueles dois dedos catucando, enquanto a outra mão apalpa o ventre... Pronto. É terminada a primeira fase. Segunda aliás, porque a primeira foi na recepção, com a entrega do dinheiro do exame à atendente. A propósito, que recepeção! Aconchegantes poltronas ocupadas por criaturas tristes, culposas, expressões de certo desespero. Alguns pouquíssimos homens, quase todos de cabeças baixas. Terminada sessão de toques, foi direcionada ao que parecia ser o escritório. Finda a consulta, é chegado o momento de tratar de “negócios”... Instruções foram devidamente dadas, assinaturas devidamente recolhidas. E um pacote significativo de dinheiro entregue.
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LUCIANA, ao lado de ROSA, quem considera seu anjo da guarda nesse momento, caminha por ruela estreita, sem alfalto, de terra avermelheda. De uma lado, casas de madeira. Do outro, muitas árvores. E aquela poeirada toda, irritante... A ruela revelou-se sem saída logo após a inevitável curva à direita. A partir daí, só restavam mais duas casas – em frente a elas, uma mata cerrada. Aquele finalzinho de rua era um lugar perdido no mundo. Com ares de esconderijo, depressivo. Uma das casas era bem simples, de madeira, a outra, de alvenaria, toda branca e bem pomposa - pelo menos no conceito Luciana de pomposidade, menina simples e não urbana, do alto dos seus quinze anos. Mas qualquer que seja o conceito de pomposidade, a casa branca de fato destacáva-se naquele cenário tão seco, árido. Pararam em frente a ela e tocaram a campainha no muro. Uma mulher gorda, vestida de branco, com a testa melada de suor, as recebeu. Pediu pra que esperassem na varanda. E lá ficaram, por mais de uma hora, sentadas em cadeiras de ferro, desconfortáveis, com um fino estofamento vermelho que não aliviava em nada. Luciana e Rosa mudas. Cada uma num planeta distante.
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Quanta felicidade! O almoço em família! A louça mais fina fôra tirada da prateleira em madeira de lei que pertenceu a sua avó. Até as pratarias reluzentes reluziam mais ainda, tamanha a felicidade. As plantinhas de plástico pareciam ganhar vida em seus vasinhos, era como se sorrissem. Quase todo mundo já havia chegado! Só faltava Ricardo, esposa e filhinho - o caçulinha. DONA LOURDES, a respeitável e prendada rainha do lar, estava radiante, afinal era o seu dia, e todos ali estavam em merecido reconhecimento aos seus anos e anos de dedicação à família. Mas o que ganharia de presente? Ouviu sem querer as noras cochichando na cozinha, tagarelando enquanto em conjunto preparavam o almoço especial. Cochichavam algo relacionado a uma vaquinha. Bem, se fizeram vaquinha, é porque o presente seria de fato significativo. Enquanto isso os homens da casa refastelados na sala, bebendo suas cervejas e discutindo o campeonato regional. As crianças brincando de pique esconde, quase derrubando a baixela decorativa de cobre, majestosa no centro da arca da sala de jantar, com seus rococós refletidos no espelho retangular, estrategicamente pregado na parede logo acima da arca, dando idéia de profundidade ao espaço. Dona Lourdes só pensava no presente. Pessoinha muito curiosa.
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Mariana, após o acerto no escritório, foi então encaminhada a uma terceira sala, por um corredor estreito e longo. Quase sem fim. Agora seria a etapa dos testes. Era de suma importância essa fase de testes. Em especial o da agulhada no dedo, de onde são retiradas gotas de sangue pra medir a capacidade de coagulação. Isso revela o potencial a hemorragias. No caminho pelo corredor, o peito ervilha avolumou-se e passou a bater descompassadamente. No turbilhão dos seus pensamentos lembrou da faculdade que ainda não acabara, da bolsa de intercâmbio para a qual concorria – com grandes chances de êxito – de um salário fixo que ainda não tinha, do “namorado” que definitamente a queria o mais distante possível. Lembrou-se também de raras vezes ter se aproximado de uma cozinha, a não ser pra fazer um café de máquina, fritar um ovo ou fazer um macarrão com salsichas. Nunca sequer havia preparado um simples(?) bolo!! Como assumiria uma responsabilidade dessas? Como enfrentaria tantas dificuldades? Mudando tão radicalmente o curso da sua vida, até então tranquila? Como? Triste, mas precisava seguir naquele corredor. Deu mais dois passos e seu coração de súbito aquietou-se. Inexplicavelmente... Tomou-se de uma tranquilidade reconfortante. Fechou os olhos, respirou bem fundo. Deu meia volta. Foi tentar reaver o dinheiro.
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Ricardo, esposa e o caçulinha enfim chegaram. As porcelanas todas já estavam dispostas na mesa. Ô dia especial! O caçulinha trouxe um cartão, com o contorno de sua mãozinha e uma dedicatória rabiscada sob a orientação da mão de um adulto, provavelmente da mãe. Os homens foram obrigados a encerrar com o futebol, alguns já estavam meio bêbados. As mulheres, muito dedicadas, entraram em cortejo carregando as mil travessas com o prato especial e os acompanhamentos. Sorridentes e tentando disfarçar um prazer íntimo por estarem, nem que seja por um dia, tomando conta do terreno e exibindo seus dotes culinários a seus queridos homens. Comeram de se fartar. A comida estava uma delícia! Santas mãos essas noras tinham! Como eram boas de tempero! Se bem que Dona Lourdes sabia que podia fazer bem melhor. Não é à toa que seus filhinhos sempre que podem dão uma fugida até sua casa, que no fundo ainda é deles, pra filar uma comidinha. Ela faz questão de sempre deixar algo caprichado à disposição de seus filhotes. Após o almoço, conversavam sobre assuntos amenos. Todos pesados feito elefantes – não as noras, essas precisavam manter a linha e o shape. Homens discorriam sobre o campeonato, mulheres sobre as novidades estéticas e as promoções de bolsas e sapatos. A campainha toca. São os estregadores das Casas Bahia. Enfim o tão aguardado presente. São dois carregadores ao todo. Entram pela porta de serviço e acomodam o fogão de seis bocas inox, todo cinza. Última novidade! As noras sorriem, cada uma já tem o seu, lógico. Dona Lourdes sem ter o que dizer.
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Luciana é convidada a entrar. Rosa vai precisar esperar ainda algum tempo na cadeira desconfortáveL de ferro. A partir daí Luciana já quase não consegue pensar. Tudo fica meio devagar e fantasmagórico. Quase não consegue ouvir o que é dito pela gorda de branco. Dizem que é enfermeira das boas! O pagamento já fora feito. Luciana lembra que há um ano atrás dava seu primeiro beijo. Como eram apaixonados... Rosa do lado de fora tensa, esfregava as mãos suadas – como seu irmão caçula foi capaz de tamanha irresponsabilidade! Luciana passa por uma sala luxuosa e é levada a um quartinho nos fundos da cozinha. O cheiro de éter... Algo é aplicado na veia do seu braço direito. Aí sim, tudo ficou mais lento e mais fantasmagórico ainda. Tonta, só consegue lembrar das tertúlias e dos seus pais estacionados na saída do clube, a sua espera, à meia noite. Ela saindo de dentro da danceteria, muito suada. Dançavam horrores. Só acalmavam na música romântica. Quando colavam os rostos. Enquanto seus pensamentos pueris voam, Luciana é escarafunchada por dentro. Até que ouve a voz da mulher de branco ao longe, dizendo que tudo havia terminado, o problema resolvido. Passou-lhe várias instruções, enfatizando a parte dos antibióticos. De fato era uma boa enfermeria essa mulher! Pra Luciana, esse foi um outro anjo da guarda naquele dia cinzento. Um tanto tosco, mas anjo! Disse também que os tampões de gazes deveriam ser mantidos por ora. E que, por algum tempo, Luciana ainda sangraria muito.

EG

sábado, 9 de maio de 2009

DONA NENÊ VAI ÀS COMPRAS

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1 - INT/EXT SUPERMERCADO/RUA - DIA
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PLANO SEQUÊNCIA
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Placa: PEG-PAG FELIZ. Parada em pé, na entrada de um supermercado, DONA NENÊ, mulher de cinquenta anos, vestida em roupas simples. Dona Nenê segura um carrinho de compras grande - de tamanho fora do comum - e vazio. A sua frente, longas filas nos caixas. Dona Nenê retira uma folha de papel da bolsa e a examina. Olha para o interior do supermercado, suspira e sorri. Som de máquina registradora.
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Dona Nenê parte empurrando seu carrinho pelos corredores do supermercado. Cruza com várias outras pessoas, na sua quase totalidade, mulheres – elegantes, empurram seus carrinhos lentamente; examinam as prateleiras com cuidado. Dona Nenê, de carrinho maior e ainda vazio, apanha produtos das prateleiras de forma compulsiva. Dona Nenê choca-se de leve com um carrinho parado. Ao lado do carrinho um casal jovem, bonito e sorridente, e, no interior do carrinho, muitas compras e um bebê louro, bochechudo e de olhos azuis, sentado numa cadeirinha. A mulher tem em suas mãos um pote de margarina grande. Dona Nenê desculpa-se com o casal. Eles não se aborrecem; continuam sorridentes. Dona Nenê os observa por alguns instantes. Dona Nenê apanha compulsivamente da prateleira muitos potes de margarina – da mesma marca que a mulher tem nas mãos; coloca-os no seu carrinho. Segue empurrando suas compras pelos corredores.

EG

quinta-feira, 7 de maio de 2009

ESTRONDO

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Equinócio. E a lua agora é cheia. Um paredão líquido de súbito eleva-se imponente na foz das águas barrentas. O estrondo ensurdecedor por quilômetros faz tremer até as senhoras mais respeitadas, que histéricas agitam seus galhos seculares ao vento, anunciando a todos o que está por vir. Mesmo elas, experientes, apavoram-se. Gostariam de sair correndo carregando suas gigantescas copas, mas impedidas são por raízes tão profundamente cravadas no solo que tudo engole. Acorrentadas! E o que dizer das mais jovens? Com seus corpos frágeis, esquálidos. Tímidos. Muitas hão de perecer, indefesas. Arrancadas e escorraçadas sem piedade. Arrastadas sabe-se lá para onde. Pelo menos lhes resta o consolo de servirem de alimento ao eterno respeitável ciclo. As aves sim, essas podem bater em revoada. E partem. Emitindo seus gritos estridentes, desesperadas à procura de paragens mais seguras. E junto com elas todo e qualquer ser desacorrentado. Dos que caminham, saltam, correm ou dos que rastejam. Embarcações recolhidas. Respirações suspensas. E por um longo tempo um silêncio agudo. O vento cessa, dando-lhe passagem. Um murmúrio ao longe é ouvido; crescente. E eis que elas surgem! Em sucessivas e ininterruptas e espumantes e implacáveis e turvas camadas das mais variadas alturas, formas e espessuras. Movendo-se em todas as direções, num furioso redemoinho erosivo de força e beleza que morde enormes tascos dos barrancos de terra. Revira raízes. Revolve todo um passado há tempos esquecido. Deixando um rastro de dolorosos sangrentos sulcos que formarão agora uma paisagem distinta. No final de tudo, a devastação. E novamente a quietude - mas dessa vez soluçante, de olhos vermelhos. E coração partido. E inexoráveis correntes - imperceptíveis na superfície - carregarão suas conquistas por novos caminhos, mudando por completo o curso dos rios. Agora revigorados. Muito mais caudalosos.
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EG
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Devidos créditos quanto à temática ao categórico Guilherme Jorge.
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terça-feira, 5 de maio de 2009

A Força do Código

Foto: EGibson
Parte da cerimônia de um casamento Japonês
Meijijingu/Yoyogi Park
Tóquio - Dez/06

1- VERSÃO LONGA E CANSATIVA (sugiro pular logo pra versão enxuta):

_ ...então, como ia dizendo, tudo não passa de uma grande hipocrisia.

_ É verdade. O que mais a gente vê por aí é mulher se esforçando pra se adequar ao modelo "mocinha casadoira". Se enquadrar na prateleira.

_ risos... mas me conta... então você é a responsável por todo esse talento? Mulheres talentosas são sempre encantadoras, sobretudo se além disso forem lindas, como inclusive é o caso.

_ Meu ilustre D.Juan sem-nome, saiba que já sou bem grandinha. Posso muito bem ser poupada dos galanteios baratinhos.

_ Luis. O prazer é meu. Quanto a ser poupada, concordo. Percebi na hora, quando te vi descendo aquelas escadas, pisando forte daquele jeito, que tipo de mulher eu teria que enfrentar. Não se preocupe, meu arsenal de galanteios baratinhos acaba de ser recolhido. Então falemos de assuntos de gente grande. Pretende expor fora do país? Acho que é o caso. Brasil é provinciano pras suas criações. Sem galanteio algum – que fique registrado – você é um talento raro. E saiba que tenho muita experiência no assunto. Mais vinho?

_ Por favor... obrigada. Fora do país? Não cogitei a possibilidade. Um passo de cada vez. Já foi bem complicado conseguir um espaço por aqui. Não sou do tipo que cria expectativas. Tudo no seu devido tempo. Conquisto a província, depois o planeta. risos...

_ Se quiser posso te ajudar na conquista do planeta. Tenho amigos curadores em Madri e Londres. E não seria favor algum. Pelo pouco que vi aqui hoje, tenho certeza que pra eles você seria um grande achado. A maneira que você trabalha as cores e formas... é...é... é moderno! Mas ao mesmo tempo... tem uma base clássica sólida, de quem sabe das coisas... sei lá... de quem sabe “o que” e “o porquê” da desconstrução... Nada é à toa. Sua pintura é estranha, visceral. E consciente... Definitivamente o Brasil é pequeno pra você.

_ Uau! Assim apaixono. Sabe como todo ego de artista é carente.

_ Sua pintura é você, Clara. E a palavra chave é “desconstrução”. Como você, sua arte é estranha. Um tanto indefinida. Mas forte... E agora sim o galanteio: linda e exótica... Um pouco mais de vinho?

_ Sim, por favor. Bem, vou me dar ao luxo de calar. Fica nada elegante eu concordar com você... risos...

_ Vamos conversar na varanda? É bem mais ventilado.

_ Claro. Desde que respeitemos um espaço mínimo... Sabe como é... risos... inteligência, vinho, arte e cultura a dois, num espaço menor que meio metro é praticamente um suicídio... risos...

_ Sem problemas. Algo me diz que teremos bastante tempo pro “suicídio”. risos...

...e algumas horas de blá-blá-blá, bastante vinho e boas cafungadas no pescoço...

_ Teu cheiro é maravilhoso! Você é A Mulher, Clara. O gosto da tua saliva é afrodisíaco.

_ Sabe que desci aquela escada pra você, né? Quer saber? ...ponto de virada!! Vamos sair daqui. Eu quero você!

...e acordaram meio grogues às 13:00, num motel cinco estrelas. Roupas espalhadas por todos os lados. E o embate recomeçou. Ele, incansável. Ela, de olhos brilhantes. Enfim, algumas horas depois, ele a deixou na porta do seu prédio. Despediram-se com um selinho. Ele anotou o número dela. E nunca mais se viram. Durante um longo tempo, ela sonhou com um reencontro. E prometeu a si mesma que tomaria mais cuidado com vinho a meio metro de distância. E que agora sua pintura se aproximaria mais do “clássico”. Evitaria os tons "modernos".


2- AGORA, VERSÃO ENXUTA (poupando saliva dos personagens):

_ ...então, como ia dizendo, tô muito a fim de te levar pra cama. Fiquei louco de tesão quando te vi descendo as escadas. Muito gostosa.

_ Como é teu nome mesmo? Luis né? Bem, Luis, também te achei um gostoso. E essa tua voz tá me dando arrepios. Tô toda molhada. Quer ir pro motel então?

_ Claro! Mas o negócio é o seguinte: nada de reencontros. Não rola essa coisa de reencontrar quem levo pra cama no primeiro encontro.
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_ Que pena... Bem, sei que amanhã vou me arrepender, ficar ansiosa, torcer pra você me procurar, achar que só devia ter dado no terceiro encontro, mas... Tudo bem. De fato transar com quem se acabou de conhecer é o fim do mundo!
--
_ Partiu então?

_ Só se for agora! Motel por tua conta...
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...e acordaram meio grogues às 10:00, num motelzinho barato. Camisinhas espalhadas por todos os lados. E embate recomeçou. Ele, incansável. Ela, de olhos brilhantes. Enfim, algumas horas depois, cada um tomou seu táxi. Despediram-se com um selinho. E nunca mais se viram. Durante um longo tempo, ela sonhou com um reencontro. E se culpou por não ter esperado uma semana. Mais uma vez.
--
EG

EROS

--
No exatinho momento
- nem segundo mais,
- nem segundo menos,
que tua mucosa
- QUENTE
tocou
minha mucosa
- MOLHADA
é que se deu
tudo isso...
É que regozijei aquosa

- e trêmula e tensa e esparramada

Deu-se então
o arrebatamento!

E planetas
alinhados!
Foi declarada
a sentença


Agora...

sou condenada.


EG

Devidos créditos quanto à temática "mucótica" ao categórico AJJ.

sábado, 2 de maio de 2009

AMIGO

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Um filete
amarelo
bruxuleante
de enxofre
fluido
das profundezas
sombrias
penetra
minhas narinas
peludas
inunda
meus pulmões
puídos

Minhas pernas
fraquejam
meus ossos
trincam
É chegado o dia
do famigerado
acerto...

Sentado
gargalhante
em seu trono
magistral
Adornado
em ouro e fogo
Envolto
a labaredas rebolativas,
ELE,
- meu estimado sócio!
garboso,
sedutor,
elegante,
agora me
cobra
o que é seu.
Por direito!

Recuperado
da tensão inicial
puxo bem fundo
o enxofre,
o alvo colarinho
afrouxo
e me pergunto:
O que seria
um ardente calor
de algumas
chaminhas,
comparado
à casa na Europa
às garagens repletas
a ELAS!
- saborosas louras-bunda-peito-lascivas
à coleção de rolex
à jacuzzi
à piscina em cascata?
Ahhhhhh...
O delicioso poder...
Hummm...
As excitantes
negociatas...
Bagatela!!
Precinho camarada...
Chamas não fariam
cosquinha...

Daí pondero:
Até que fiz um puta negócio!

Então meu bem apanhado
santíssimo AMIGO
Que venha o tridente
Que venham as espetadas
Que venha com todo seu clero
Que eu até gozo...
Que também dou gargalhadas.

EG

Com os devidos créditos quanto à temática "diabesca" ao categórico AJJ.