terça-feira, 12 de maio de 2009

Matinta Pereira

Autor: Luana Chagas
Estátua do Parque Ambiental de Paragominas - Pará
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À noite ela sobrevoou meu apartamento. E deu aquele grito fino de loucura.
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Então eu soube que o dia havia chegado. O grito ecoou pelos meus ossos, enrijecendo meus póros, fazendo com que cada um deles erguesse seu próprio pêlo, numa sincronia perfeita que desceu da nuca à canela, como numa carreira de dominó. Uma cólica aguda remoeu em minha barriga. Tive vontade de correr pro banheiro. Podia ouvir meus batimentos. Não que estivesse com medo. Não, nada disso. No fundo já queria muito esse encontro. Tinha uma curiosidade imensa sobre o que havia do outro lado da moeda. O mundo do lado de dentro do espelho. Porque no lugar que estava – grande bosta! – já bem sabia o que me cercava e o que me azucrinava. Nada era capaz de me surpreender. A chatice entediante das miudezas, dos nhem-nhem-nhens, das lamúrias dos humaninhos e suas “coisinhas” e tal. Queria mais que isso. Queria o novo. O inesperado! O avesso de tudo aquilo. Portanto, longe de um temor desesperado, eu diria que a cólica, os pêlos eriçados e a taquicardia, não passavam de uma simples manifestação já bastante previsível, cientificamente justificada. Segundo os estudiosos, todo animal pressente o seu dia. E quando isso acontece, asseguram os cientistas sabichões, seja pra ruivo, preto, amarelo, encardido, de duas, quatro ou nenhuma pata – mesmo no caso dos rastejantes – a porcaria dos mecanismos naturais são sempre automaticamente acionados. Alguns se borram – não foi meu caso, “graças a Deus” (com todas as aspas possíveis). Alguns de tão ligados até antecipam o processo, facilitando em muito o trabalho pra ela. A tal da adrenalina despejada na corrente sanguínea é tanta que o cabra pode ficar como se tivesse acabado de cheirar, de olhão esbugalhado. Engraçado é que não vi filminho nenhum. É lenda essa história de filminho, viu? Tua vida passando em flashes, numa versão resumida. Mentira! Tudo mito! Pelo menos pra mim, que já vinha me preparando pro encontro e portanto já vinha rodando meu filminho numa versão minissérie. Queria mesmo saber qual era sua forma – se é que tinha uma. Se tinha cor, se vestia mesmo um manto preto. Se carregava alguma coisa nas mãos. Se tinha uma aparência assustadora.

Ela deu mais um sobrevôo; um grito mais histérico ainda.
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E a porra dos mecanismos naturais mais uma vez se fizeram presentes. Dessa segunda vez, confesso, me borrei um pouco. Nada demais, mas fui ao banheiro resolver a situação. Não ficaria bem chegar do outro lado naquelas condições – sei lá quem me receberia. Resolvido o problema, voltei calmamente pra sala, sentei-me no computador pra redigir algumas frases – instruções que acreditava serem necessárias. Não pra mim! Que já estaria bem despreocupado de tudo, vivenciando todas aquelas novidades! Mas quem sabe pra Clotilde que viria pra faxina no dia seguinte. Coitada, não queria que essa criatura que tanto me confortou nos momentos mais difíceis, sobretudo quando a louça já batia no teto, ficasse assim, sem explicação alguma. Escrevi:

– Querida Clotilde. Pra começar, nada de choro e descabelamentos. Sei que você é um pouco dada a essas coisas, mas pelo amor que você tem aos seus filhinhos, não faça tanto escândalo! Não quero a vizinhança inteira alvoroçada, sobretudo a fofoqueira do 504. Se perguntarem alguma coisa, pode dizer por favor que foi um AVC. Assim dá menos pano pra manga. Ah... Não que isso me importe nesse momento, mas tenho certeza que a você importará: separei as roupas sujas, aliás, quase todas estão sujas. Assim que você tirar a inhaca, pode levar e distribuir lá na comunidade. Assim como os sapatos, e tudo o mais de uso pessoal que achar por aqui. Pena que você propriamente não vai poder utilizar muita coisa. Primeiro porque não é seu tamanho, segundo porque você não ficaria bem em roupas masculinas. Mas aposto que o Zé vai se refastelar com tudo. O que sobrar, distribui. Leva também relógio, computador, aquela porcaria de televisão e toda a tranqueira de quinquilharia que acumulei e que agora sei, não me servem pra coisa alguma. Não se preocupe, exatamente ninguém virá reclamar nada... Outra coisa, sua indenização está na gavetinha da cômoda. Apesar de ser uma diarista, sem o tal do vínculo empregatício, você merece toda a parafernália de FGTS, 130, INSS, e o escambal. Alías, tô te deixando bem mais que isso. Aposto que vai dar até pra terminar a bendita laje. Não... Não chora! Seja macho mulher! Cadê os cabelos nas ventas!? É só uma partida. Um afastamento temporário. Não se preocupe, nos veremos em breve. Eu vou tratar de arrumar da melhor forma possível as coisas pra você do lado de lá, pode ficar tranquila. No mais, é só isso. Entrega o dinheiro do aluguel do mês pra velha - tá dentro da escrivaninha -, senão é capaz dela entrar logo com uma ação, e não acho que haverá um oficial de justiça querendo ir lá me entregar algum papel. No restante, muito obrigado por tudo! Você sabe que foi muito mais que uma mãe poderia ter sido. Olha! Já disse pra não chorar... E tira por favor aqueles aliens da geladeira. O povo que virá aqui pros procedimentos habituais, não vai gostar muito do cheiro. Beijos nessa bochecha risonha! Até breve.

E assim, apanhei minhas caixinhas de remédios, um copo de uísque – nesse momento uma excitação – e deitei na minha confortável poltrona marrom, à espera de Dona Pereira. Diziam que era uma senhora de bastante idade. Cordialmente separei um fumo de rolo pra lhe presentear. Porque ouvia dizer que esse era um dos seus fracos...

EG

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