domingo, 10 de maio de 2009

Salve, Salve a Rainha do Lar!

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Pernas afastadas, penduradas uma de cada lado. E a cabeça da médica ao meio. Médica fria, quase sem expressão. MARIANA sente uma pontada dolorida, mas não no colo do útero, e sim no colo do peito, apertado, do tamanho de uma ervilha. Os pensamentos em redemoinho, num liquidificador de angústias. E aqueles dois dedos catucando, enquanto a outra mão apalpa o ventre... Pronto. É terminada a primeira fase. Segunda aliás, porque a primeira foi na recepção, com a entrega do dinheiro do exame à atendente. A propósito, que recepeção! Aconchegantes poltronas ocupadas por criaturas tristes, culposas, expressões de certo desespero. Alguns pouquíssimos homens, quase todos de cabeças baixas. Terminada sessão de toques, foi direcionada ao que parecia ser o escritório. Finda a consulta, é chegado o momento de tratar de “negócios”... Instruções foram devidamente dadas, assinaturas devidamente recolhidas. E um pacote significativo de dinheiro entregue.
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LUCIANA, ao lado de ROSA, quem considera seu anjo da guarda nesse momento, caminha por ruela estreita, sem alfalto, de terra avermelheda. De uma lado, casas de madeira. Do outro, muitas árvores. E aquela poeirada toda, irritante... A ruela revelou-se sem saída logo após a inevitável curva à direita. A partir daí, só restavam mais duas casas – em frente a elas, uma mata cerrada. Aquele finalzinho de rua era um lugar perdido no mundo. Com ares de esconderijo, depressivo. Uma das casas era bem simples, de madeira, a outra, de alvenaria, toda branca e bem pomposa - pelo menos no conceito Luciana de pomposidade, menina simples e não urbana, do alto dos seus quinze anos. Mas qualquer que seja o conceito de pomposidade, a casa branca de fato destacáva-se naquele cenário tão seco, árido. Pararam em frente a ela e tocaram a campainha no muro. Uma mulher gorda, vestida de branco, com a testa melada de suor, as recebeu. Pediu pra que esperassem na varanda. E lá ficaram, por mais de uma hora, sentadas em cadeiras de ferro, desconfortáveis, com um fino estofamento vermelho que não aliviava em nada. Luciana e Rosa mudas. Cada uma num planeta distante.
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Quanta felicidade! O almoço em família! A louça mais fina fôra tirada da prateleira em madeira de lei que pertenceu a sua avó. Até as pratarias reluzentes reluziam mais ainda, tamanha a felicidade. As plantinhas de plástico pareciam ganhar vida em seus vasinhos, era como se sorrissem. Quase todo mundo já havia chegado! Só faltava Ricardo, esposa e filhinho - o caçulinha. DONA LOURDES, a respeitável e prendada rainha do lar, estava radiante, afinal era o seu dia, e todos ali estavam em merecido reconhecimento aos seus anos e anos de dedicação à família. Mas o que ganharia de presente? Ouviu sem querer as noras cochichando na cozinha, tagarelando enquanto em conjunto preparavam o almoço especial. Cochichavam algo relacionado a uma vaquinha. Bem, se fizeram vaquinha, é porque o presente seria de fato significativo. Enquanto isso os homens da casa refastelados na sala, bebendo suas cervejas e discutindo o campeonato regional. As crianças brincando de pique esconde, quase derrubando a baixela decorativa de cobre, majestosa no centro da arca da sala de jantar, com seus rococós refletidos no espelho retangular, estrategicamente pregado na parede logo acima da arca, dando idéia de profundidade ao espaço. Dona Lourdes só pensava no presente. Pessoinha muito curiosa.
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Mariana, após o acerto no escritório, foi então encaminhada a uma terceira sala, por um corredor estreito e longo. Quase sem fim. Agora seria a etapa dos testes. Era de suma importância essa fase de testes. Em especial o da agulhada no dedo, de onde são retiradas gotas de sangue pra medir a capacidade de coagulação. Isso revela o potencial a hemorragias. No caminho pelo corredor, o peito ervilha avolumou-se e passou a bater descompassadamente. No turbilhão dos seus pensamentos lembrou da faculdade que ainda não acabara, da bolsa de intercâmbio para a qual concorria – com grandes chances de êxito – de um salário fixo que ainda não tinha, do “namorado” que definitamente a queria o mais distante possível. Lembrou-se também de raras vezes ter se aproximado de uma cozinha, a não ser pra fazer um café de máquina, fritar um ovo ou fazer um macarrão com salsichas. Nunca sequer havia preparado um simples(?) bolo!! Como assumiria uma responsabilidade dessas? Como enfrentaria tantas dificuldades? Mudando tão radicalmente o curso da sua vida, até então tranquila? Como? Triste, mas precisava seguir naquele corredor. Deu mais dois passos e seu coração de súbito aquietou-se. Inexplicavelmente... Tomou-se de uma tranquilidade reconfortante. Fechou os olhos, respirou bem fundo. Deu meia volta. Foi tentar reaver o dinheiro.
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Ricardo, esposa e o caçulinha enfim chegaram. As porcelanas todas já estavam dispostas na mesa. Ô dia especial! O caçulinha trouxe um cartão, com o contorno de sua mãozinha e uma dedicatória rabiscada sob a orientação da mão de um adulto, provavelmente da mãe. Os homens foram obrigados a encerrar com o futebol, alguns já estavam meio bêbados. As mulheres, muito dedicadas, entraram em cortejo carregando as mil travessas com o prato especial e os acompanhamentos. Sorridentes e tentando disfarçar um prazer íntimo por estarem, nem que seja por um dia, tomando conta do terreno e exibindo seus dotes culinários a seus queridos homens. Comeram de se fartar. A comida estava uma delícia! Santas mãos essas noras tinham! Como eram boas de tempero! Se bem que Dona Lourdes sabia que podia fazer bem melhor. Não é à toa que seus filhinhos sempre que podem dão uma fugida até sua casa, que no fundo ainda é deles, pra filar uma comidinha. Ela faz questão de sempre deixar algo caprichado à disposição de seus filhotes. Após o almoço, conversavam sobre assuntos amenos. Todos pesados feito elefantes – não as noras, essas precisavam manter a linha e o shape. Homens discorriam sobre o campeonato, mulheres sobre as novidades estéticas e as promoções de bolsas e sapatos. A campainha toca. São os estregadores das Casas Bahia. Enfim o tão aguardado presente. São dois carregadores ao todo. Entram pela porta de serviço e acomodam o fogão de seis bocas inox, todo cinza. Última novidade! As noras sorriem, cada uma já tem o seu, lógico. Dona Lourdes sem ter o que dizer.
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Luciana é convidada a entrar. Rosa vai precisar esperar ainda algum tempo na cadeira desconfortáveL de ferro. A partir daí Luciana já quase não consegue pensar. Tudo fica meio devagar e fantasmagórico. Quase não consegue ouvir o que é dito pela gorda de branco. Dizem que é enfermeira das boas! O pagamento já fora feito. Luciana lembra que há um ano atrás dava seu primeiro beijo. Como eram apaixonados... Rosa do lado de fora tensa, esfregava as mãos suadas – como seu irmão caçula foi capaz de tamanha irresponsabilidade! Luciana passa por uma sala luxuosa e é levada a um quartinho nos fundos da cozinha. O cheiro de éter... Algo é aplicado na veia do seu braço direito. Aí sim, tudo ficou mais lento e mais fantasmagórico ainda. Tonta, só consegue lembrar das tertúlias e dos seus pais estacionados na saída do clube, a sua espera, à meia noite. Ela saindo de dentro da danceteria, muito suada. Dançavam horrores. Só acalmavam na música romântica. Quando colavam os rostos. Enquanto seus pensamentos pueris voam, Luciana é escarafunchada por dentro. Até que ouve a voz da mulher de branco ao longe, dizendo que tudo havia terminado, o problema resolvido. Passou-lhe várias instruções, enfatizando a parte dos antibióticos. De fato era uma boa enfermeria essa mulher! Pra Luciana, esse foi um outro anjo da guarda naquele dia cinzento. Um tanto tosco, mas anjo! Disse também que os tampões de gazes deveriam ser mantidos por ora. E que, por algum tempo, Luciana ainda sangraria muito.

EG

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