quarta-feira, 20 de maio de 2009

Altitude

Chegaria atrasado ao treino. Resolveu então que voaria. Projetou-se pra frente com muita vontade, e então conseguiu abandonar o chão. Esse impulso era sempre a parte mais complicada, pelo menos a que lhe exigia mais esforço, sem garantias de dar certo. E foi subindo devagar. Não como passarinho, que bate as asas com toda segurança de quem nasceu praquilo. Mas num voo meio troncho, desajeitado. Sempre contando com a possibilidade real de um acidente escabroso. Tentava não pensar nessa possibilidade, porque isso o desconcentraria e tornaria a possibilidade ainda mais real. O impulso funcionou, agora era uma questão de ganhar altitude. E subiu um pouco mais. Já via os fios de alta tensão aproximando-se - havia sempre o perigo de choque elétrico. Ficava nervoso... Não! Peraí! Não podia ficar nervoso, senão perderia o foco. O ideal era tentar se manter acima dos fios. Num tremendo esforço, movia o corpo em ondas, como o homem peixe do seriado de TV. Pensando bem, assim como o cara, ele também nadava numa espécie de fundo do mar. Só que um mar de ventos, que fazia uma resistência enorme a sua passagem. Por isso precisava dar um jeito de furar o paredão. Pra sua técnica funcionar, a sincronia devia ser perfeita. Difícil, porque seu corpo não era tão leve assim. A onda iniciava com a cabeça, concomitantemente aos movimentos dos braços, feito nadador mesmo. Abrindo caminho. Tudo tinha que acontecer exatamente no tempo certo, ou já começava a descer. Havia inclusive o perigo de uma queda súbita, como um tijolo despencado do sétimo andar. Calma, sem apavoramentos. Queria que seu pai o visse agora, assim todo flutuante, nas alturas. Ficaria orgulhoso. Vez ou outra um carro chispava loucamente abaixo. Imagina cair no alfalto e ainda ser atropelado? Os telhados vermelhos das casas de tijolos iam passando. Um a um.. Era uma sensação indescritível ver assim tudo de cima. Pessoas passando feito formiguinhas. Passando não na velocidade que gostaria, afinal, como já foi dito, não era um passarinho. Mas bem melhor do que seguir por terra, tendo que esbarrar numa penca de gente, que o faria chegar atrasado mais uma vez. Anoitecia. Isso tornava sua empreitada homérica ainda mais insana. Começou a se preocupar com esse escurecimento de fim de tarde... E já sobrevoava uma rua deserta, tida como muitíssimo perigosa. Não pôde evitar um certo desespero. Pra ser sincero, era mais que desespero, era um terror que aumentava gradativamente. Aos poucos começou a perder altitude. Já estava abaixo dos fios de novo. O pior, aproximava-se de uns tipos muito suspeitos, mal encarados. A cada segundo ficavam mais próximos, e já haviam percebido sua aproximação e seu temor. E já o encaravam com expressões sarcásticas e ameaçadoras. Seu coração disparou! E suava, e suava, mesmo com toda ventania. O grupo de mal elementos já quase podia tocar seus pés. E tentavam raivosamente, esticando os braços de bandidos. E ele se empenhava cada vez mais em se afastar daquelas garras. E os facínoras aproximavam-se quase na mesma proporção. Seu corpo já doia de tanto esforço. Seu pai já não podia presenciar isso... Maldita hora que resolveu ir àquele treino. Prometeu que se caso escapasse ileso dessa, não se arriscaria mais. Quase sem fôlego, conseguiu alcançar um poste de luz - a essa altura os cretinos já eram num total de quase dez. Uma quadrilha. Agarrou-se ao poste e ali ficou tremendo, até que surgisse uma chance de escapar. Seu peito arfando de cansaço e medo.

EG

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