terça-feira, 26 de maio de 2009

ESCURIDÃO

Ela viu uma besta naqueles olhos que chispavam em faíscas. De ódio. Se alguma vez teve medo, com certeza foi esse o dia. Percebeu o quanto aquele homem marcaria sua vida, para o bem, ou para o mal. Trancada com um completo desconhecido num apartamento alugado por temporada, sem nenhum conhecimento prévio de passado, de possíveis e prováveis angústias, experiências, pai, mãe, sentimentos, crenças, valores. Nada... Pedro. Assim se chamava o homem de braços-troncos. Troncos que tanto podiam confortá-la, quanto esmagá-la até que colasse no chão. Daria sua alma pra ter aqueles braços por perto para sempre. Sabia o nome da empresa onde ele trabalhava, pelo menos onde dizia trabalhar. Mas jamais checou. Nunca duvidou dele. Os únicos telefonemas internacionais eram gastos com tórridas palavras de paixão e entrega – imaginou que jamais conseguiria se entregar tanto assim a partir de agora. E sexo. Muito sexo pelo telefone. Inúmeras e indizíveis declarações sussurradas, baixinho, no escuro do seu quarto. E agora ele estava ali, um sonho materializado. Espumando, só porque ficou um par de horas vagando sem rumo por uma cidade que não conhecia, a espera dela, cuja única certeza era a de que seria capaz de casar com ele naquele mesmo dia. Se ele a quisesse. Mas isso tudo não excluía o fato de estar amedrontada. Chamavam muito sua atenção as veias ainda mais sobressaltadas em seus braços e pescoço, bombeadas pelo o ódio que circulava em sua corrente sanguínea. Com ele era como se caminhasse por um cabo de aço muito fino, a trinta metros de altura. Qualquer passo em falso a faria despencar. Explicou-se. Disse que não tinha como fazer contato, que sentia muito pelo atraso e pela situação constrangedora, e que infelizmente não conseguiu ser liberada antes. Era um período difícil no seu trabalho. Jamais imaginou que ele pudesse estar zanzando pelas ruas, preso do lado de fora. Não imaginava que ele pudesse ter perdido a chave.

Ele apertou forte seu braço. Não poeticamente forte. Mas forte de doer e deixar marcas roxas. E então ela percebeu que não era só a cólera que corria em suas veias. Ele transpirava tesão. Tesão envolto à ira. Uma combinação fatal. Infelizmente para ela. Foi arrastada da copa até a área de serviço. No caminho tentava inutilmente se explicar. Explicações essas que ele não ouvia. Dele só obtinha uns resmungos ofegantes. Why you did that to me? - escorriam pelos dentes trincados, no seu sotaque dominicano. Era a única frase possível de se entender. Repetida inúmeras vezes enquanto era levada como um mísero inseto. Fraco, perto daquela montanha de músculos e revolta. Pavor. Viu a janela da área se aproximando e pensou em seus pais. Foi encostada de bruços contra o mármore frio e sentiu o vento no rosto. E só o que imaginava era o quanto seria difícil pra eles o reconhecimento do corpo da filha querida. Ficaria desfigurada - estavam no décimo andar. Ele olhou para o lado e viu a porta do quartinho de empregada. E a puxou pro lugar mais aterrorizadoramente escuro e claustrofóbico que já havia estado em toda sua vida de altos e baixos. Nada, simplesmente nada, era possível ser visto. Pela atmosfera, pelo cheiro, por uma espécie de sensor de morcego, percebeu o quanto era minúsculo o espaço. Um mofo mórbido subiu por suas narinas. Estava numa caixa de fósforos escura. Ali custariam a encontrar seu corpo. E quando encontrassem, muito provavelmente ele já estaria bem longe. E apenas uma cama também minúscula caberia naquele cubículo. Cama essa para a qual foi empurrada sem muita gentileza. A partir daí já não foi mais capaz de pensar coisa alguma. Desistiu. Desistiu de se justificar. Desistiu de tentar encontrar explicações pra suas inquietudes. Parou de imaginar seus pais. Já não importava mais buscar qualquer sentido. Passou a enfrentar tudo sem resistência. Solta. Vazia. Minutos derradeiros onde o nada era senhor absoluto e tirano do tudo. E deixou-se despencar. Mas sem no entanto conseguir conter lágrimas e soluços. Pedro levantou raivosamente sua saia, enquanto segurava firme o seu pescoço. E como pesava. Eram apenas dois dedos a comprimir devagar sua garganta. Polegar e indicador. Dois insignificantes dedos foram suficientes pra lhe tirar aos poucos aquele bem tão etéreo, do qual nunca teve tão plena consciência como agora. Seus pulmões esvaziavam-se. Seu coração ainda batia, cada vez mais fraco. E agora a escuridão não era só na caixa de fósforos ao redor, mas aos poucos sua mente também escurecia... Como se alguém a desligasse da...
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Abriu os olhos sentindo-se encher de ar novamente. Pedro acariciou e beijou seu rosto, compulsivo. Beijava suas lágrimas que agora jorravam sem controle. Pousou a cabeça em seu ventre e lá ficou. Em silêncio. Quieto.

EG

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