sexta-feira, 24 de julho de 2009

Diário de Bordo 1

Por: Débora Noal
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Sou também deste mundo.
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Hoje o dia amanheceu pleno de domingo, quando a manhã ainda acordava, subi o morro acompanhada de uma enfermeira da equipe para fazermos uma exploração do terreno. Vestidas para as intempéries do clima, caminhamos durante algum tempo ao som dos cânticos das igrejas que reverberavam, ainda que longe, pelas ruelas e esquinas de areia e pedra. Era um caminhar manso e curioso, um gostoso momento de descoberta, sensação boa de adentrar as ruelas e ver o olhar de estranhamento das pessoas, afinal éramos nós: as brancas que adentrávamos seus territórios, quase dentro de suas casas para poder passar de uma estreita rua a outra, onde a cada nova casa saudávamos com: Bonjour, e recebíamos um Bonjour Blanche. Assim somos nós nesta terra de contrastes e linguagens que produzem o estranhamento, o aninhamento, o encontro. Quando ainda subíamos fomos encontrando meninos de 8, 10, 12 anos de idade que ainda que nada falassem nos acompanhavam lado a lado e sorriam com o olhar. Por vezes algum perguntava algo em Créole (uma das duas línguas deste país que é também francófono), pediam para tirar fotos e dividiam a água que carregávamos conosco enquanto subíamos. Quando chegamos ao alto do morro, a grande recompensa do esforço: poder contemplar as diversidades desta cidade plena de inquietudes. Ao tempo que enxergávamos o brilhante e azul mar, a montanha de pedras, o grande lago montado pela força da natureza durante o ciclone, as casas ainda sem telhado, os grandes bairros feitos de tenda para alojar os desabrigados do ciclone, as grandes montanhas de lama depositadas em meio as ruas, casas e escolas, os velhos carros amarelos com suas latarias furadas. Podíamos escutar as buzinas dos caminhões que cortam a cidade na grande Rota National, parecia uma cena de um filme que ainda não tinha visto. Uma boa sensação de quem descobre o mundo na plenitude de suas sensações. Passado metade do dia a subir e a descer montanha, ajudadas pelos promissores projetos de adultos, retornamos a base do MSF na seqüência do domingo de descobertas. Sempre retornamos a base e/ou avisamos de tempos em tempos o rádio operador para informar onde estamos e se estamos bem. Não saímos sem rádio ou celular, temos um forte esquema de segurança, além de regras bastante claras sobre os lugares e horários que podemos sair, jamais estamos sozinhas. Quando o dia ainda era domingo, fomos à praia, porque domingo também é dia de praia para a equipe do Ciclone... Bom dia de encontro. Fiquei durante toda a tarde a brincar com os pequenos projetos de adultos que me cercavam, fizemos uma aula básica de como produzir fotos com minha máquina fotográfica. É bom acompanhar a descoberta curiosa que o aprisionamento da imagem provoca, a cada novo flash um sorriso de quem sabe que é autor, que é capaz, que é possível. Seguido do momento aula de fotografia, me brindaram com um novo penteado, eram 3 pequenas cabeleireiras de 8, 10 e 14 anos que me cercavam e fizeram muitas tranças, com um pente desbotado, que um dia parecia ter sido cor-de-rosa, e poucos dentes para exercer sua função de pentear, mas as pequenas e ágeis mãozinhas me produziram um novo visual. Enquanto as três me produziam, havia uma quarta que fazia de conta que fazia as minhas unhas e lixava meu pé com um coral marinho, em plena praia, em frente ao mar, os mundos se encontravam e trocavam formas de se compreender. Na despedida o grande presente: as pequenas figurinhas de 4 e 5 anos de idade juntaram um grande saco de minúsculas conchinhas do mar e me deram de presente, em troca ofertei uma coca-cola que estava dentro da mochila, milimétricamente dividida por 10 crianças, uma triste cena de um momento feliz de encontro. Ainda que por vezes machuque ver as incongruências desta cidade, tenho uma boa sensação de estar em contato com a vida...Bom saber que posso desabitar meu mundo tranqüilo de certezas. Bom saber que a cada novo dia é um novo amanhã que abre uma janela ou me joga pela porta um raio de sol, uma gota de chuva ou um círculo de vento. Sensação boa de devir, de atuação, de sair da platéia da televisão e entrar pela tela da vida, caindo de susto no palco de um mundo que antes me tocava, mas não era meu, agora eu sou também deste mundo.
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PARTE 6 - 06 de janeiro de 2009, Gonaïves, Haiti.

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