segunda-feira, 2 de novembro de 2009

BETH COBRA

apresentando... Beth Cobra, nova moradora do pensionato.
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Beth Cobra acompanhou com os olhos as fissuras na tinta branca do teto. Cada uma das ramificações contadas e recontadas inúmeras vezes - exaustivamente. Interessante é que só parecia descascar na área próxima à luminária. Óbvio! Devido ao aquecimento! As descamações só lhe aumentavam a sensação de secura na garganta e narinas, as últimas entupidas com os malditos tubos. Ficou um pouco tonta. E como se tivesse pressentido o mal estar, a enfermeira chega com sua bandejinha e seu sorriso adorável. Hora das seringas. Curvilínea essa enfermeira. Beth a beijaria de língua se pudesse. Arrancaria aquele jaleco branco e a comeria ali mesmo, em meio àquela aparelhagem toda. Quem sabe o contato com a seiva daquela criatura transbordante não amenizasse sua aridez. Talvez então conseguisse fazer correr algum frescor em suas veias combalidas por tantas agulhadas. Olhou de soslaio pro monitor e esqueceu por ora das descamações do teto. Passou a acompanhar o desenho aleatório dos seus batimentos. Lembrava uma fileira de montanhas irregulares, num deserto pedregoso e esquecido, jamais visitado. Na grande maioria das vezes piscava num compasso fraquinho, de quem já nada esperava...

_ Então Sra. Beth. Conseguiu lembrar de algum nome?

Acenou com a cabeça que não. Murmurou algo, não compreendido por seu anjo de jaleco. E tudo escureceu novamente.

Sonhou. E no sonho atormentado conseguiu distinguir a figura de uma mulher com o olhar mais repreensor que testemunhara na vida. Prestando mais atenção, Beth percebeu que ainda usava vestido. Um vestido florido que odiava, costurado numa máquina antiga de pedal de ferro. O detalhe do pé de sua mãe subindo e descendo hipnoticamente naquele pedal. Ponta, calcanhar. Ponta, calcanhar... Sim, sua própria mãe coseu o tal vestido de flores que tanto odiava, grintando pra que voltasse pra dentro de casa e largasse a maldita bola. Ou tempos depois, gritando pra que nunca mais voltasse. E assim lá se vão quase trinta e cinco anos desde que resolveu obedecer às últimas categóricas ordens - então com quinze anos.

Sete dias depois e as descamações no teto pareciam ter aumentado. Já não se sentia assim tão tonta. As agulhadas a fortaleceram - sempre fortalecem. Só precisava muito sair dali. Seu gato, coitado, a essa altura já deve estar duro, morto por inanição. Mas seu anjo de jaleco branco dizia que não era possível partir, a não ser mediante a tal assinatura. Pra que diabos precisava de uma autorização pra ir embora? Nunca alguém havia se responsabilizado por nada, por que haveria de ser diferente agora? Não era uma questão de amnésia, ela simplesmente não tinha um um nome pra aporrinhar. E seu anjo parecia não compreender isso. Não havia um nome disponível, disposto a se abalar até o hospital só pra dar um rabisco num papel idiota, cuja existência e obrigatoriedade só serviam pra lhe esfregar na cara sua total e completa solitude. Precisava ir embora. Mas quem haveria de se importar? Assim como chegou trazida unicamente por suas pernas e acompanhada apenas por uma enorme dor no peito, também deveria sair por conta própria. De relance viu os peitos volumosos do seu anjo, pela brecha aberta entre um botão e outro enquanto delicadamente era servida sua sopa. A visão a deixou em êxtase. E se convenceu de que ali era o céu. Parou de buscar um nome. Parou de desejar voltar ao convívio de ausências, em seu deserto amarelado.
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EG

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