quarta-feira, 25 de março de 2009

Cinzas de um Sutiã - 1

Acaba de chegar da Noca. Dessa vez tirou uma penca de cutícula. Aproveitou pra tratar também daquele calo – agora essa rodela avermelhada e inchada no seu dedo médio. E antes ainda tem que passar no Souza! Mas dessa vez só vai ser um retoque na raiz e uma escova básica. Nada de hidratação. Não pode se atrasar. “Deixo a Marroquina pra semana que vem. Quando ele já não estiver por perto”. Complicado ficar três dias sem lavar o cabelo agora. Imagina! E o cheiro de formol? Enquanto isso se vira com a chapinha mesmo. Dessa vez o romance emplaca! Tudo vai ser perfeito, mas com um toque de naturalidade. Como se não tivesse movido um dedo! Por falar em impressionar, precisa ligar pro empresário e marcar um almoço. “Onde tá mesmo o cartão que ele deu?” Sabe que não será difícil fechar esse contrato – basta lembrar dos olhares dele... Ainda bem que decidiu ir a esse jantar beneficente da titia ontem! Tudo bem que sua comprovada competência, charme e simpatia – sinceramente? suas curvas também – são a chave do seu sucesso, mas reconhece que uma forcinha da família influente, sobretudo na política, não chega a ser um pecado assim tão hediondo. Entre coqueteis, jantares, festas e, convenhamos, muito champagne, é que se tecem as melhores redes de contato. Que coisa! Como é que nada disso é ensinado no MBA? Sentia-se deslumbrante ontem... Mal dá pra acreditar o quanto já brigou com o espelho no passado. Não sente saudade daquele tempo. Odeia as fotos da juventude – se é que é capaz de odiar alguma coisa, pois hoje só cultiva sentimentos nobres, compatíveis com seu porte altivo. Agora falando sério, dá pra suspeitar que um dia esse corpo trabalhado já carregou aquela quantidade de quilos extras? Pshiiii! Pensa baixo louca! Isso se chama força de vontade! Ô santo bisturi milagroso! Mas isso tudo é bobagem! O que importa mesmo, mesmo, mesmo, é se sentir bem aqui dentro, óóó! A cabeça, lindinha! A cabeça... “Na cabeça está o segredo da verdadeira auto estima. Bisturi e muita malhação são só complementos a essa conquista interior”. Amanhã deve sair a nota no Carlinhos. Nota nada, uma coluna inteira! “Será que me saí bem com as perguntas?” Perelá! Ai meu Deus, será que essa abusada dessa raiz ficou ressaltada na luz do refletor? Pôxa vida, por que não nasceu com o cabelo um pouco mais claro? Isso a pouparia do calvário da tinta. Porque, vamos parar de nhem-nhem-nhem, homem gosta mesmo é de loura, e do tipo peitão-bundão! E quanto a isso, sentia-se simplesmente tu-do-de-bom! Tudo que há!! E ainda por cima, pense numa mulher elegante! Era ela. Citou Gabriel Garcia Marquez! Olhe só! Claro! Não adianta ser SÓ bonita, SÓ cheirosa, SÓ profissional de sucesso, SÓ doce e meiga e amiga, com um coração desse tamanho. Tem que mostrar que pensa e que é muito instruída. Que está preparada pra falar sobre qualquer coisa! Política, literatura, cinema, e o que não pode faltar, lógico: MODA! Pra complementar, sabe preparar uma macarronada de comer de joelhos... Porque é mulher, e uma mulher eclética, versátil! Ela lê muitos clássicos, sabe? Mas seu forte é sacar frases originais e espirituosas. E em nome de tamanha originalidade é que atirou ontem na lata do colunista: “Quero escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho”. E arrematou com um sorriso largo e luminoso, desses que se vê as gengivas rosadas que tanto enfeitiçam os marmanjos. Essa frase não podia faltar. É sua frase de miss – seu grande sonho de criança; quando todos comentavam do seu rostinho de princesa. Humm... Pensando melhor é prudente que a ordem dessa frase seja revista – por conta dessa tal de urgência biológica, entende? “Sei que vou ser uma mãe muito zelosa! Adoro crianças! Me dou bem com qualquer uma... Ai minha Virgem Maria, será que ainda dá tempo?” Percebe-se uma certa inquietação – uma pitadinha de leve – quando assim, quase sem querer, lembra que os trinta já começam a ficar um tanto distantes... Mas quem sabe dessa vez hein? Afinal tudo indica que esse é o cara. Mesmo sabendo que ele não é o tipo que casa fácil. É do tipo resistente! E ainda tem a distância. Mas isso ela dá um jeito. Já consegue até se ver, toda loura e radiante, dentro do seu vestido de princesa, toda de branco, pra combinar com sua alma e caráter... “Ei, onde será que foi parar o rímel que a tia Leda trouxe de Paris?” Ah! Droga! Tava na bolsa que o pivete levou! Com essa já são cinco vezes! Sua coleção de bolsas ficou agora desfalcada. Tinha que ser logo a da última coleção de inverno? “Ah! Esse governo que não tira esses meninos da rua... Esse não passava dos dez!” Como isso a deprime, coitadinha! E quando o mendigo não quis esmola? Mas apenas um sorriso? Seu coração partiu... Tira seu sono tanta injustiça social! Precisa lembrar de fazer alguma coisa pra ajudar. Acha até que vai pedir pra aumentar a contribuição mensal do orfanato... Acaba de ter uma ideia! Vai comprar um mimo pro amado. Nada muito sofisticado. Talvez uma momblanc. Mas um modelo básico! Nada de ostentação... DECIDIDO. Vai dar um pulinho no shopping no caminho pro salão. Aproveita e compra aquele par de brincos enormes pra usar na sua ocasião tão especial de hoje. “Mulher tem que usar brincão! Isso devia ser uma garantia constitucional!” Não pára de contar as horas pra se atirar novamente naqueles braços. “Ai, meus dedos! Acho que dessa vez a Noca pegou pesado com o alicate....”

– e o despertador massacra às 4:30 da manhã. Abre os olhos. As pálpebras pesam. Um dia inteiro pela frente. Aterrorizante a ideia. O aluguel vence hoje e ela só tem parte do dinheiro. Faz força pra se arrastar até o banheiro. Sente-se só. Sem esperanças. Vontade de chorar. Acabou o leite. Mas ainda tem o café, o açúcar e algumas baguetes. Macarrão, feijão e uma saladinha pro almoço de hoje. Então ainda está tudo bem... Sorri e já consegue caminhar. Lembra que seu filho precisa de um atlas. O livro de Geografia que distribuiram esse ano veio com dois Paraguais! E veja só, sumiram com o Equador! Sente-se humilhada... DECIDIDO. Vai dobrar o turno de hoje...


EG

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3 comentários:

  1. Discorrer sobre qualquer assunto,desde o pó entre os móveis,o caminho para o trabalho num dia nublado ganha uma conotação lúdica quando encontra as suas mãos ,Elke!!
    Vc ruma as palavras por caminhos singulares , dando voz própria a um eu tão fascinante quando a pessoa que o sustenta!
    Parabéns por hj e por sempre ser essa mulher fundamental!!

    Um beijo grande

    André Nóbrega.

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  2. Incrível figura! Como consegues? transformar realidade em ficção assim tão levemente, despojadamente e ludicamente. É terapia??? rsrs

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  3. Vejo que se trata do mesmo Anônimo do "Dia que Encontrei Tom". Sinta-se em casa.

    Bem, digamos que é tudo psicografado...rs

    EGibson

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