segunda-feira, 30 de março de 2009

Conto de Carnaval

Era Segunda de carnaval. Noite. Voltava de uma rodinha de amigos na areia da praia de Ipanema. Todos explodindo em gargalhadas idiotas. Penso que por conta um pouco do álcool, mas principalmente pelo espírito de festa que contagiava a todos. Muitos foliões eufóricos e ridículos num vai e vem sem objetivo pelas ruas. Nunca entendi muito bem essa coisa de abobalhar só porque é carnaval. Mas enfim, meus amigos haviam insistido tanto, que acabei cedendo e aceitando o convite pra engrossar o caldo de desocupados na cidade. Passávamos na calçada de uma loja cuja vitrine exibia inúmeras sandálias havainas. Eram sandálias de todas as cores. Uma palheta bem variada. Algumas com penduricalhos nas tiras. Estavam dispostas lado a lado na prateleira, formando um mosaico vibrante. Não sei se por conta das cores intensas das sandálias havaianas, se por conta da dose de álcool nos miolos ou mesmo pelo clima de orgia que toma conta das pessoas nessa época do ano, sinceramente não sei explicar, mas numa fração de átomos de segundo, menor que uma piscadela de pálpebras, fui invadida por uma sensação estranha e assustadora. Ressalto: invadida. De repente tudo escureceu. E eu já não estava mais entre meus amigos. Havia sido arremessada pra uma outra dimensão, sei lá como posso chamar esse estado de espírito. O mais assustador: você estava em mim. Sentia seu cheiro, sua textura e sabor. Minha boca imediatamente transbordou de água. Devo ter salivado. Com certeza salivei. A ponto de um filete escorrer, pingando na minha camiseta amarela. Similar ao que acontece com minha cadela sempre que sabe que vai ganhar um biscoito. Tinha certeza. Era você. E eu segui caminhando pela calçada, sabe-se lá como, sem conseguir ouvir ou ver mais nada ao meu redor. Só conseguia sentir você ali presente, dentro de mim. Pra ser mais precisa, na minha boca.
Bem, se essa experiência tivesse se dado em rasgos de segundos, vai lá, eu não me impressionaria tanto assim. Classificaria como uma rápida e furtiva alucinação, fruto de uma mente alcoolizada e apaixonada. Em outras situações no passado, sob efeito da paixão cega e louca, com meus hormônios nos píncaros da glória, já fui capaz de reproduzir na mente, por alguns segundos, o perfume do amado; a ponto de me questionar se ele estaria ou não pelas redondezas. Até aí nada demais. A mente tem esse poder, cientificamente comprovado. Acontece que essa espécie de abdução - acho que o termo não poderia ser mais apropriado -, era totalmente nova, eu diria algo fantasmagórico. E a coisa se prolongou por uma quantidade considerável de tempo. Aliás, tanto o conceito de tempo quanto o de espaço já não se enquadravam nos moldes conhecidos. Eu estava suspensa, numa realidade paralela ao que acontecia em Ipanema. Não se tratava de uma sensação, eu de fato tinha você entrando e saindo da minha boca. E não adiantava eu tentar me afastar ou pedir pra que parasse. Era você quem controlava a situação; e, a julgar pela forma com que a coisa se deu, sem prévia solicitação, insinuação, ou qualquer preparação mínima que fosse, muito pelo contrário, de forma abrupta e repentina - bruta – conclui que você não pararia mesmo se eu suplicasse com os olhos lânguidos e aquosos. E lá caminhava eu pelas calçadas de Ipanema, cercada de amigos e com você dentro de mim. Macio. Quente. Salivado e pulsante, em movimentos escorregadios de vai e vem na minha boca. Me desesperei. Um desespero misturado a excitação natural que um ato desses suscita, potencializada pelo fato de não saber ao certo o que estava acontecendo; excitação essa - quero que fique claro - arrancada praticamente à força. Desespero por ainda existir um fio de consciência, fino e frágil, que me lembrava a todo instante que eu me encontrava em plena via pública; com a possibilidade de haver pessoas escandalizadas a minha volta, assistindo a tudo, perplexas com seus queixos arriados. Como eu seria capaz de explicar a elas essa cena tão David Lynch? Tive vontade de gritar pra todos ao meu redor que a culpa não era minha! Que eu estava sendo praticamente violentada por um fatasma seu! Mas como? Se todos os espaços da minha boca estavam tomados por você? Na realidade o único som que eu conseguia emitir era o de gemidos abafados. Então você passou a acelerar os movimentos. E meus batimentos dispararam descontroladoramente. Minha respiração, arfante, chegava a fazer ruído. E assim seguimos, eu e o fantasma de você, unidos de forma irrefutável, por dois quarteirões inteiros. Talvez três. Pra ser mais precisa, levitando. Até que, chegado o momento grandioso do espetáculo, fui tomada por uma onda que não sou capaz de descrever com palavras, e, enfim, você obteve o que foi buscar. E escorreu pela minha garganta, me inundando de um gosto acre e forte. Você, até então mudo, emitiu um grunhido de satisfação, desses que você sabe muito bem. Já então leve, foi saindo devagar, e sumiu, tão inexplicavelmente como chegou, sem ao menos um adeus, um até logo. Sumiu num outro piscar de pálpebras, como um ninja numa cortina de fumaça. Abri os olhos e tonta, quase caí na sarjeta. Só conseguia ouvir um dos amigos chamando pelo meu nome. Aos poucos fui retornando ao convívio deles, meio sem forças, meio encabulada, provavelmente enrubescida. Um amigo perguntou o que havia acontecido. Em estado de choque, muda estava, muda continuei meu caminho.
EG

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