terça-feira, 28 de abril de 2009

Caldinho de Feijão

No meu carrinho de madeira falta uma roda. Vou pedir pro meu pai consertar assim que chegar do estágio. Tomara que não demore. Quero montar o quebra-cabeça com ele. A gente se esparrama no chão da sala. Daqui sinto o cheiro do feijão na panela. Minha mãe tá lá na cozinha. Vou lá ver. Quem sabe ela não molha o pão no caldinho e espeta no garfo pra mim. Meu pai costuma fazer isso sempre, quando não tem que ir pro estágio. Aí depois vamos pra porta da rua, sentar nos degraus de madeira. Ele me contando histórias incríveis – que são sempre as mesmas. Eu ouvindo, muito atento, comendo o pão molhado no caldinho, espetado num garfo. E os vizinhos passando na rua. Cheguei na cozinha e pedi pra minha mãe fazer pro almoço um prato cheio de batata frita, que eu adoro! Acho que é a coisa que mais gosto no mundo, depois do pão espetado. Ela me explicou que hoje não haveria batata frita. Quem sabe amanhã. Mas molhou o pão... Só vi uma única panela no fogo. Era velha, meio amassada e de alça. Minha mãe adora essa panela. Dá pra ouvir o barulho do feijão borbulhando. A fumacinha saindo. Perguntei se dessa vez teria macarrão e suco de groselha – ela também respondeu que talvez amanhã. Igual à batata. Bem, então seria o feijão e pronto. Sentei no chão e apanhei uma saúva. Elas saíam do buraco da parede de madeira. Adoro cortá-las ao meio. Divididas, elas ainda assim continuam se mexendo. Incrível! Todas têm bundas enormes, umas caras minúsculas e esquisitas, parecem uns dinossauros em miniatura, com duas garras na boca, que mais parecem dois arpões. Depois de cortadas ao meio, era bunda pra um lado correndo, cabeça pro outro remexendo. Levantei e fui buscar o tubo de cola dentro da minha pasta escolar. Um pinguinho basta pra colar a cabeça novamente à bunda. Esperei um pouco pra secar. E pus no chão novamente. E ela continuou seu caminho, seguindo suas companheiras. Fiz isso com mais umas cinco. Foi quando minha mãe percebeu e ralhou. Não achou bom que eu gastasse cola à toa. O material escolar, segundo ela, custava o olho da cara. Nunca entendi muito essa coisa de olho da cara. Adulto é muito exagerado. Será que um adulto cortado ao meio pode ser colado com uma porção grande de cola polar? Olhei pra minha mãe e a achei um pouco triste. Parecia que seus olhos estavam vermelhos. Deve ter sido a cebola. Ela sempre chora quando corta cebola. Mexia o feijão com uma colher de pau. De vez em quando entornava um pouco mais de água na panela. Eu adorava o feijão que ela fazia. Minha mãe mexendo a panela deu um grito fininho. Não quis me dizer o que foi. Me mandou ir brincar na sala, que na realidade era quarto também, já que nossa casa era sala-cozinha – e banheiro lógico. Começou a chorar compulsivamente. Levantei pra ir embora. Mas antes vi minha mãe com a colher de pau tirando algo de dentro da panela e atirando na lata de lixo. Sentou na cadeira de madeira, tampou o rosto com as duas mãos, pra esconder seus olhos. Mas não adiantava, não podia me esconder os soluços. E eu já tinha visto suas lágrimas. Me aproximei tentando saber o motivo da tristeza. Passei a mão nos seus cabelos. Não me agrada ver minha mãe chorar! Ela mais uma vez me mandou ir pra sala – que era quarto também! Nisso ouvimos barulho do meu pai chegando. Eu pulei eufórico. Minha mãe correu pro banheiro. Suspeitei que ela não quisesse que ele visse sua cara vermelha. Ficou lá um tempão. Voltou de cara lavada. Meu pai já tinha lavado as mãos. Disse que tava faminto. Que viera a pé do hospital, com o estômago colado nas costas. Mais uma vez não entendi nadica de nada. Fui até a pia, lavei as mãos e sentei-me à mesa. Era uma mesa pequena, de quatro lugares. Meu avô mesmo quem fez, com sua misteriosa caixa de ferramentas cor de abóbora, da qual morria de ciúmes. Sentei ao lado do meu pai. Minha mãe estava esquisita. Tirou do forno uma panela com arroz, serviu a mim e ao meu pai com arroz e o feijão cheiroso. Botou na mesa uma garrafa de água de um plástico azul, desses plásticos crespos, cheios de bolinhas que arranham a mão. Além da garrafa, mais dois copos - o meu tinha o desenho do Tom e Jerry, ninguém podia usar. Eu tinha ciúmes. Assim como meu garfo, minha faca, colher e prato - meus talheres tinham um contorno encaracolado nas pontas, que os tornava especiais. A colher tinha um sabor diferente em contato com minha boca. Minha mãe sentou-se conosco mas dessa vez não quis comer. Seu olhar era distante. Disse que passava mal. Andava indisposta. Meu pai comeu feito um desesperado. Ele realmente parecia estar com muita fome. Eu nem tanto. Já tinha feito minha boquinha espetada no garfo. Deixei bastante comida no prato. Estranho que dessa vez minha mãe nem reclamou. Aliás, não insistiu nada. O almoço acabou. Eu e meu pai fomos pra sala, montar o quebra cabeça. Minha mãe ficou na louça. Depois foi até à sala, nos acompanhar no jogo. Tive sede, acho que dessa vez minha mãe exagerou no sal. Resolvi ir buscar um copo d'água. Chegando à cozinha vi a lata de lixo e uma curiosidade irresistível me fez caminhar até lá. Ao abrí-la, não vi nada de muito diferente do que costumo ver numa lata de lixo de cozinha. Restos de cascas de cebola, pedaços pimentão, de cheiro verde, sacos plásticos, etc, etc. etc. Ah, e também um objeto amarronzado, meio desmilinguido e troncho, com algumas linhas nas laterias, não lisas, mas com pequenos espetinhos. Parecia as perninhas das minhas formigas. Poderia até dizer que se tratava de uma saúva esmagada, mas não poderia afirmar isso, dado o tamanho bem mais avantajado e algumas folhas que pareciam até asas. Além do mais, saindo do que parecia a boca, não via arpões, como nas minhas amigas saúvas, mas dois fios marrons enormes. Esse tipo de coisa esquisita que se só se deve achar em latas de lixo.
--
EG

Nenhum comentário:

Postar um comentário