quarta-feira, 1 de abril de 2009

Aporema

Foto: EGibson
Rio Mazagão Dez'07 - Amapá

Sinto falta do gosto da água de moringa. Do cheiro de esterco de vaca, que cobria até o meio a canela do meu tio. De olhar minha tia em pé, lavando a louça no jirau de madeira. Água puxada com muito esforço no poço do quintal. Das noites iluminadas por lamparinas e lampiões, e das histórias escabrosas de terror que os mais velhos contavam. Ouvia-se até o barulho da onça a rondar a casa. Do olho de vidro do caseiro, cujo rosto era salpicado de pintas acinzentadas - resquícios de chumbo por se meter com a mulher alheia, assim diziam. Dos banhos de rio, e do desespero da minha prima caçula, com a possibilidade de uma visita repentina do boto. Dos pontinhos pretos ao longe - cabeças dos búfalos imponentes, de costas peludas, mergulhados nos pastos já alagados. Eu é que não ousava chegar perto, muito menos usando roupa vermelha. Sinto falta da sensação aterrorizante por constatar minha tamanha inferioridade diante dos paredões de árvores, arranha-céus gigantes que enfileravam nossa pobre canoa, tão ínfima e frágil, deslizando macia por uma rua estreita de águas turvas e só aparentemente plácidas; quando voltávamos da festa de aniversário na casa do vizinho mais próximo, cobertos pelo manto escuro da noite, só parcialmente iluminados por frestas prateadas que cruzavam as folhagens. Vira e mexe um baque surdo no casco da canoa. O guia, morador da região, justificava como sendo um jacaré. Que pavor. Parecia que a qualquer momento seríamos engolidos pelos paredões verdes. Que nosso veículo emborcaria e então seríamos devorados por uma família de jacarés famintos. Sinto falta da teu braço acolhedor e tranquilizador, primo meu, que fazia meu peito disparar de tanta emoção por sentir tua pele tocar na minha, o que até me fazia esquecer do pavor, do assombro, por atravessar aquela floresta compacta, labirintesca e assustadora, a pé, na escuridão da noite, guiada apenas por lanterninha insignificante, pisando tensa em poças enormes das águas que já começavam a invadir a mata. E se as águas subissem repentinamente? Nem teríamos tempo de correr. E se eu pisasse numa arraia? Diziam os mais velhos que elas viviam entocadas na lama, escondidas. E se alguém as pisasse sem querer, seus arpões enfurecidos fariam um estrago tão grande que um sujeito poderia quase morrer de dor. Eu mesma já havia presenciado um ferimento desses. Coisa assustadora.

Saudade. Saudade de uma vida de verdade. Não dessa aqui, de mentira. A qual jamais pertenci. A terra das buzinas, máquinas digitais, lap top’s, carros importados, egos super desenvolvidos, escovas marroquinas, botox, silicone e toda essa parafernalha inútil. A terra das máscaras. De homens e mulheres de plástico. Máscaras, máscaras e máscaras! A terra das armaduras e dos tristes desencontros... De pessoas que se querem e não se permitem. Saudade do seu abraço protetor e sincero, meu primo querido... Um abraço de árvore frondosa. Queria sentir novamente o seu calor, colada em você, trêmula, na garupa daquele cavalo. Quando meu coração ainda era capaz de acreditar.
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Da mesma matéria somos feitos. De folhagens, troncos seculares, pajelâncias, seivas, ciclos, devastação, renovação e água. Muita água doce.
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EG

4 comentários:

  1. Só uma alma de desbotamento incomum teria um ''quintal'' tão privilegiado como esse!!Vc consegue reunir a práxis da literatura regionalista e dar entornos de uma contextualização humana frente à mecanização que nos é imposta frente ao espírito!
    Parabéns por fazer sua prosa deslizar da terra e remoer do asfalto a poesia necessária de cada um!

    Bjs

    André Nóbrega.

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  2. André, seu poeta queridíssimo! Que honra tê-lo aqui.
    Bjs!
    Elke

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  3. Gatona, desta vez tu me surpreendeste! Não sabia que escrevias tão bem :) Adorei tudo o que li e viajei na tua imaginação!!!
    Parabéns!! Saudades!!
    Pedro

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  4. Nossa, da até para (re)sentir as emoções de então... principalmente o medo, diante da grandiosidade de uma natureza tão cheia de suspense, recheada dos mais diversos seres a nos "atormentar". Mas é maravilhoso também relembrar a inocência,nosso modo de ver o mundo, nossos anseios, temores, sonhos.Será que ainda guardamos resquícios dessa profusão de sentimentos, impressões, olhares, que não as lembranças? Adorei o blog prima e o texto então... vc ja sabe! Go ahead!
    bju

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