sábado, 11 de abril de 2009

Domingo de Páscoa


Crack. E da barata só sobram as antenas e a gosminha que alguns afirmam ser sangue. Uma asa pra cada lado. Não que ela estivesse de fato incomodando. Ele jamais se importou com a presença dessas criaturas que de quando em vez lhe aparecem para uma visita, em vôos rasantes e seus barulhentos bateres de asas pala única janela do conjugado tosco, mal cheiroso e pouco iluminado que mora, ou melhor, que se recolhe. Às vezes surgem atarantadas, saídas de um buraquinho minúsculo qualquer. Para ele, aquele ser ali esparramado e colado no assoalho de madeira feito uma porção de catarro viscoso, vítima de uma impiedosa pisada, é sobretudo um ser feliz. Ele o inveja. Como deseja ardentemente que um gigantesco pé o esmague até que seus ossos sejam reduzidos a pó. Assim não precisaria enfrentar a janela. Quer gritar, pedir socorro. Se esgueirar por debaixo da porta. Estranho. Seus pés encontram energia para pôr cabo à vida de uma mísera barata, mas não conseguem dar cinco passos em direção à porta mais próxima. Que seria a do casal vizinho barulhento, que vive se estapeando e berrando, histéricos com aquele poodle insuportável - se ainda lhe sobrasse tempo, esmagaria o poodle também. O casal tem momentos difíceis, brigam dia sim, dia não, mas acredita que sejam realmente felizes. Até um capacho com a afirmação “lar doce lar” puseram na entrada. O que estariam preparando para o almoço de amanhã? Um bacalhau à Gomes de Sá? Talvez um bom vinho. Branco, claro - pra combinar com o prato. Apesar de só terem trocado duas ou três palavras ao longo de cinco anos morando lado a lado, quem sabe se batesse à porta deles, não seria convidado para o almoço? Da sua janela consegue ver a movimentação nas cozinhas e nas áreas de serviço. Sua janela não dá para rua, mas sim para o vão interior do prédio. Um vão estreito, que mais parece um fosso claustrofóbico, como o santo sepulcro que tem sido toda sua existência. Seu desafio agora é arrastar aquela gigantesca pedra-janela e bater suas próprias asas em direção à paz e à felicidade que tanto ouve falar e tanto almeja. Levitar ressuscitado rumo ao divino, à perfeição. Rumo à claridade. Só espera que seu vôo não chame muita atenção e não acabe atrapalhando os preparativos para o almoço de Páscoa.

Uma outra barata passeia serelepe pelos restos de chocolate do ovo que ganhou da tia.

EG

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