quarta-feira, 15 de abril de 2009

Cidade Esquecida

Um emaranhado seco e amarelado de feno passou rolando pela rua de terra avermelhada, levado por um redemoinho de um vento uivante, vindo de uma das colinas próximas, num assobio agudo e longo. Triste. E as janelas e portas escancaradas das casas batiam histéricas. Algumas portas continham protetores de tela já esburacados – tentativa de conter insetos indesejáveis. E a sinfonia era aterrorizante: janelas, portas e protetores de tela - todos batendo, descompassadamente loucos. E o arremate por conta dos sons de placas enferrujadas, dependuradas nas fachadas de bares e pequenas vendas vazias, lutando contra a lei da gravidade. Do chão de piçarra levantava uma poeira que dificultava a visão e grudava na pele. Uma cidade tomada por erva daninha. Cercas velhas e quebradas, com olhares de quem precisa de cuidado. Essa foi a visão assustadora e melancólica que tive ao chegar. Uma cidade de fantasmas. Uma pontada aguda aqui ó, onde penso que exista um coração. Tudo ali me parecia tão familiar, mas ao mesmo tempo tão estranhamente desconhecido. Sentia uma tal de saudade de coisas, de cheiros que nem sei ao certo se vivi. Numa poça me vi refletido. Meus cabelos mal cuidados, e as profundas entradas na testa. E os ralos fios já amarelados. Uma barba que há tempos não aparava. Havia me transformado num ancião. Um ancião com breves lampejos de molequices. O que ora bolas fui fazer eu lá praquelas bandas desconhecidas? Se minha memória de velho ainda prestava pra alguma coisa, aquele era exatamente o dia do encontro anual da confraria do colégio. De várias partes vinham idosos como eu, testemunhas de uma época que não volta mais. Não podia chegar atrasado àquele compromisso! Era o grande momento de rever todos - ou melhor, os poucos que ainda restavam. E eu não devia estar ali! Naquele diabo de lugar no meio do nada! Foi quando eu, homem mais do que feito, de repente senti um bolo me subindo pelo peito, engatando bem aqui na garganta, prestes a ser vomitado. Feito o excesso de pêlos que gatos põe pra fora, de tanto que se lambem. Caminhei com dificuldade até um lugar que me pareceu ter sido um dia uma pracinha. Havia algumas árvores, todas com bastante idade, como eu, com suas madeixas caídas pelos seus longos e tortuosos galhos. Nem preciso mencionar o quanto o mato era alto. Mas ainda assim eu podia ver um banco ou outro de cimento. Meus olhos amarelados de velho se fixaram num deles, embaixo da árvore que me parecia ser a mais senil de todas. Ela me olhava, lá do alto de toda sua história de vida, com uma certeza de quem já presenciou muita coisa. E parecia me reconhecer. E essa combinação banco-árvore era como um imã pertubador. Dessa vez não me contive. E o bolo inevitável foi despejado. E tremi. Tremi em soluços. Tive que sentar para não cair e talvez quebrar um osso qualquer que dificilmente se reconstituiria. Lembrei da minha mãe que sempre dizia “engole o soluço menino!!”. Naquele dia responderia a ela: até que tentei minha mãe, até que tentei... Mas a imagem pertubadora daquele banco velho de cimento, o simples ato de sentar nele, e o olhar acolhedor daquela árvore senhora venceram minha já combalida virilidade. Uma dor que não sabia se era no peito, ou na barriga, ou na cabeça. Talvez fosse na alma, penso agora. O que aquele banco e aquela árvore tinham pra me deixar daquele jeito? Que poder era aquele? E permaneci lá, chorando feito um garoto. Minha pressão deve ter subido muito. Já não podia vivenciar certas emoções. Foi quando ouvi alguns passos lentos...

Uma menina de cabelos revoltos. Esmirrada. Olhar brilhante. Uma saia até os joelhos. A camiseta branca, de tecido, com um bolso do lado esquerdo, bordado com uma espécie de brasão. Ela se aproximou, carregando uma pasta contra o peito, meio assustada, parecendo não acreditar no que via. Sentou-se ao meu lado, emocionada. Passou a mão na minha testa e no meu cabelo. Depois, com dois dedos, deslizou pelos meus olhos, tocando meus cílios e sobrancelhas. Como se os desenhasse novamente. E chorou. Não um choro compulsivo e de dor, como o meu havia sido. Mas um choro risonho. Não entendi. Aquilo tudo já me assustava por demais. Ela abriu um sorriso. E meio gaguejando falou que nunca havia perdido as esperanças. Que sempre esteve certa que um dia, eu retornaria ali. Que todo o abandono, que toda a solidão de anos, numa cidade esquecida como aquela, havia agora valido a pena. E me abraçou e me beijou. E não lhe importavam as minhas rugas. Ou minha boca murcha e sem vida. Depois do longo beijo, me entregou um pequeno livro, com uma dedicatória na contra-capa. E eu retribui com um cartão que não sei como, estava nas minhas mãos. Ela sorriu e me desejou felicidades pelo nosso aniversário. E novamente me abraçou. E mais uma vez eu chorei. E tudo ficou tão claro e reconfortante.

EG

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